A Vida dos Livros

“A Mais Breve História da Rússia, dos Eslavos a Putin”

A obra de José Milhazes (D. Quixote, 2022) é um importante documento no qual encontramos o essencial da história russa, o que nos permite compreender melhor os acontecimentos mais recentes, designadamente na Ucrânia.

UMA HISTÓRIA RICA E COMPLEXA
Ao falarmos da Ucrânia estamos perante um caso especialmente difícil, longe do que quer a narrativa de Putin, porque a história envolve um conjunto vasto de razões. Kiev está na origem da civilização russa. Segundo a tradição, no século VI, aí se reuniram treze tribos eslavas orientais voluntariosas e determinadas, que fizeram prosperar a região do Dniepre. Se o primeiro Estado russo nasceu em Novgorod, quando o príncipe Riurik, um normando, não eslavo, foi convidado a assumir o poder, foi o seu irmão Oleg que transferiu para Kiev a capital da Rus. Iniciaram-se então as relações com Bizâncio e geraram-se as raízes dos povos russo, ucraniano e bielorusso. Kiev tornou-se o coração da Santa Rússia, herdeira da segunda Roma (Constantinopla). Contudo, no ocidente da Ucrânia, em Lviv, cidade fundada pelo Grão-duque da Ruténia, em 1256, encontramos, de certo modo, uma outra história. A cidade passou sucessivamente da soberania polaca, em 1340, para a austríaca em 1772, integrando o Império Austro-húngaro. Depois, a cidade foi polaca, em 1919, no fim da Grande Guerra, e tornou-se ucraniana em 1939. Em 1945, nas partilhas territoriais do fim da 2ª Guerra, a região foi integrada na República Soviética da Ucrânia, que viria a ser fundadora das Nações Unidas, ao lado da URSS e da Bielorrússia. A soberania de Direito da Ucrânia é assim inequívoca e antiga. A Ucrânia é um Estado soberano, com raízes históricas complexas e claras, a partir de influências que se completam – eslava e europeia central. Kiev é uma das cidades mais antigas da Europa e uma referência matricial da rica cultura eslava. Fundada no século V é um centro da economia e da cultura. E o cristianismo ortodoxo, de bases profundas, teve Kiev como matriz. A própria língua ucraniana tem raízes próprias, próximas da língua russa, do servo-croata e do polaco. A palavra “ukraina” significa zona fronteiriça, onde o domínio cossaco se distinguia dos principados eslavos do norte e oeste e das hordas turcas do sul. Em 1240, a cidade foi ocupada e destruída pelo Império tártaro-mongol, na conquista iniciada por Gengis-Khan. Kiev perdeu influência, mas manteve autonomia, no âmbito do Canato da Horda do Ouro. Em 1321, a cidade seria conquistada pelo Grão-Duque da Lituânia, passando ao domínio polaco-lituano até ao final do século XVII, quando Kiev passou para a esfera do Império russo, tornando-se o mais importante centro cristão ortodoxo, antes da transição para Moscovo. Nos séculos XVIII e XIX a vida da cidade foi dominada pelas autoridades militares e eclesiásticas, em 1834 foi criada a Universidade de S. Vladimir e em 1846 constituiu-se a proibida Irmandade de S. Cirilo e S. Metódio, defensora de uma Federação eslava de povos livres, animada por Nikolay Kostomarov. Kiev foi a terceira cidade do império, importante centro de comércio, beneficiando do rio Dniepre. As lágrimas e a vontade de um povo resistente reforçam a história, a herança e a memória de um dos fundamentos da civilização europeia, que a cegueira bárbara de um ditador será incapaz de destruir.    

A CULTURA RUSSA E A EUROPA
A cultura russa faz parte integrante da cultura europeia. Confundir as decisões de um ditador com o espírito de um povo é não compreender a essência da humanidade e da cultura. Cada nova guerra põe novas questões, mas não pode fazer-nos esquecer a memória histórica e o seu significado. A literatura russa é, aliás, bem ilustrativa da importância dos testemunhos e das reflexões sobre a guerra. Tolstoi e Pushkin muito nos ensinaram nesse domínio, como Dostoievski e Tchekov em matéria de psicologia humana. Os escritores são as melhores testemunhas das suas épocas. E muitos grandes artistas russos têm sido, ao longo dos tempos, dos melhores intérpretes da vida humana. Lembremo-nos de Berdiaev e da compreensão profunda da existência humana. E não esqueçamos que a identidade de Kiev e da atual Ucrânia estão no coração histórico da civilização russa, com um rico património, que está a ser destruído. E eis que não poderemos cultivar animosidade que atinja a sublime cultura eslava na sua diversidade. A grande Rússia é um complexo caleidoscópio, uma simbiose, ligada a uma história complexa, entre a tradição da Rus e a presença dos mongóis da Horda do Ouro, uma mistura de eslavos, fino-úgricos, alanos e turcos.

QUE FUTURO DA EUROPA? 
O futuro da Europa dependerá de um modus vivendi abrangendo a galáxia eslava, que em lugar da lógica imperial, deverá basear-se no respeito da Carta das Nações Unidas, na democracia, no Direito Internacional e nos direitos humanos. A Ucrânia constitui um caso especial de convergência entre as raízes culturais da Rússia, como herdeira da segunda Roma (Bizâncio), e as tradições dos povos ocidentais, que integraram a Polónia e o Imperio Austo-húngaro. A comunidade internacional tem de contrariar energicamente a lógica da guerra, do ressentimento e da mútua humilhação. A barbárie não pode continuar a impor-se à civilização. Andrei Kourkov, escritor de língua russa, defende a causa ucraniana, rebelando-se contra a guerra total e a destruição de teatros, museus, hospitais e escolas, património comum da humanidade. Não é só a Ucrânia a estar em causa. Eis por que faz sentido, o apoio aos cidadãos russos ilustrados e democráticos e o acompanhamento das consequências das sanções económicas, de modo a criar condições concretas para uma saída do conflito que limite as consequências desumanas. “A liberdade do homem distingue-se de qualquer outra força, porque é reconhecida pela nossa consciência, mas aos olhos da razão em nada se distingue das outras”. Foi Tolstoi quem o disse, no fecho do seu romance maior.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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