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A EUROPA DE GEREMEK

por Guilherme d’Oliveira Martins

 


A EUROPA DE GEREMEK
(Por Guilherme d’Oliveira Martins)


Quando recebi a notícia da estranha, brutal e inesperada morte de Bronislaw Geremek (1932-2008) veio-me à memória a sua personalidade doce, afável, firme e de uma inteligência política singularíssima. Sendo historiador de formação e autor de uma obra notável sobre a Idade Média, soube sempre ligar esse conhecimento e essa capacidade de compreender a humanidade ao exercício permanente da responsabilidade de ser cidadão activo e de entender a política como uma das tarefas mais nobres de qualquer sociedade. Era um europeísta convicto e um liberal no sentido mais rico da palavra, da mesma linhagem de um Norberto Bobbio, alguém que acreditava numa sociedade de cidadãos e de pessoas, onde o fundamental está no que vale e não tem preço. Há alguns meses vimos a fibra de que era feito quando recusou participar num processo de devassa ao passado dos polacos. E recebeu uma enorme ovação no Parlamento Europeu, de que era membro, quando, com uma serenidade arrepiante, disse que preferia arcar com as consequências e resistir, em vez de aceitar a política do ressentimento que apenas poderia alimentar espírito de vingança.


Era assim. Reflectia sempre muito, e quando falava era firme como os firmes e prudente como os sábios. Conheci-o bem a partir dos anos noventa, e os amigos comuns polacos, desses tempos heróicos, como Adam Michnik e Jacek Wosniakowski, sempre me falaram de Geremek como um homem superior. Era alguém de quem se gostava à primeira vista, e para quem falar e dialogar era um exercício essencial de respeito e humanidade. Lembro-me bem de uma longa conversa que tivemos no Museu Gulbenkian, em que o historiador falou, entre referências maravilhadas sobre a colecção, do desafio fantástico que era a abertura de fronteiras. Mas haveria que abrir simultaneamente os espíritos e as sociedades, para que a liberdade cívica e o respeito pudessem tornar-se marcas irreversíveis contra os egoísmos e as tentações imediatistas, burocráticas ou das receitas irreversíveis… Nunca a liberdade poderia considerar-se ganha ou adquirida, haverá sempre que manter a disponibilidade de espírito e o inconformismo necessários para pôr tudo em causa se necessário para que a liberdade e a autonomia das pessoas e a dignidade humana não possam ser postas em causa.


“A Europa precisa de uma memória colectiva para forjar um futuro comum” – costumava dizer. Quanto à memória, o historiador considerava que tem de ser cultivada e protegida como factor de liberdade e de compreensão, e não como motivo de ressentimento ou de vingança. Quanto ao futuro comum, não deve ser confundido com uma receita ou uma estrutura infalível, mas como uma criação sempre inacabada, a caminho do que desejamos como melhor e mais justo. Profundo conhecedor da “Respublica Christiana” medieval e do intrincado labirinto das várias economias e mercados, e das várias culturas e mentalidades, o historiador sabia que o mundo contemporâneo não pode viver com uma globalização que esqueça a troca, os dons e o desejo de justiça e de coesão. Daí que o projecto europeu não pudesse confundir-se, na sua acepção, com uma construção burocrática, distante, harmonizadora e incontrolável. Por isso defendeu, há muito pouco, com Enrique Barón Crespo, que a pedagogia do necessário Tratado de Lisboa se fizesse a pensar no cidadão comum europeu e no bem comum europeu. O “futuro comum europeu” deverá, por isso, basear-se numa complementaridade indispensável entre legitimidade e equilíbrio. E falando de legitimidade, é preciso entender que só haverá um projecto europeu de futuro se formos capazes de ligar as cidadanias dos Estados e da UE, a legitimidade dos Estados e dos Povos. Geremek acreditava nos projectos gradualistas e no exercício necessário de mobilizar todos. No impasse europeu a que chegámos temos de ouvir de novo Bronislaw Geremek. Temos de trazer os cidadãos para a ribalta. E, como disse tantas vezes o antigo Ministro polaco, temos de estar conscientes de que a UE precisa das soluções encontradas no Tratado de Lisboa – em especial no controlo do princípio da subsidiariedade, no reforço dos poderes dos parlamentos nacionais, na clarificação das competências dos Estados e da União e na consagração de uma Europa política apta a defender os interesses vitais comuns. Marcar passo na confusão só adia as decisões fundamentais e abre caminho à decadência e ao retrocesso, de quem não pensa a Europa como espaço de cidadania.

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