A Vida dos Livros

“A Divina Comédia” de Dante Alighieri

Dante Alighieri morreu há setecentos anos, a 14 de setembro de 1321, e foi muito mais do que um grande poeta e pensador. É autor de um poema imortal – “A Divina Comédia” – a um tempo teológico e épico, uma das obras-primas da literatura universal, mas, mais de que uma obra literária, tornou-se a base da língua italiana moderna, representando o culminar do modo medieval de entender o mundo e a abertura para o pensamento moderno.

UM POETA DESESPERADO

Segundo Vasco Graça Moura, que transpôs exemplarmente para português “A Comédia” de Dante Alighieri (1265-1321), provavelmente rebatizada por Boccaccio para a expressão que imortalizou a obra até aos nossos dias, representa “um homem desesperado, aos 35 anos, no meio do caminho da vida, seguindo a formulação de Isaías, diz ter empreendido uma jornada singular entre a noite de Quinta-Feira Santa (7 de abril) da Páscoa do ano de 1300 e a quarta-feira seguinte (13 de abril)”. Esse homem vivia numa Itália perturbada por querelas políticas em que interferiam constantemente as ambições do Império, da Coroa francesa e do Papado, para além das grandes famílias da Toscana, do comércio e da manufatura. Dante nasceu e cresceu numa cidade onde, desde há décadas, duas fações se digladiavam intensamente, consoante seguiam o Sacro Império Romano-Germânico ou o Papado, respetivamente, Gibelinos e Guelfos (estes últimos ainda subdivididos em Brancos e Negros). O poeta reclama que os abusos e a simonia (tráfico das coisas sagradas) sejam reprimidos, aspirando a uma vida civil regenerada capaz de combater a corrupção. A jornada descrita na “Comédia” enumera um conjunto significativo de exemplos, com incidência e repercussão variáveis, que apresentam o ambiente vivido na República. Dante aproveita para invocar desde a mitologia à Bíblia, da história local à história antiga e à contemporânea, da observação da Natureza e da paisagem até aos ofícios artesanais e às práticas sociais, e assim aponta os efeitos negativos da fragmentação política e do negocismo imperante…

UM EXÍLIO PERPÉTUO

A “Divina Comédia” foi escrita entre 1304 e 1321, no período correspondente ao exílio da cidade de Florença a que Dante foi condenado em 1302 pelos guelfos negros – sendo ele um guelfo branco, defensor do Papado, mas próximo dos partidários do Sacro Império. É sob essa condenação, que o poeta considera injusta, que este vai escrever a sua obra-prima – guiado pela sombra de Virgílio, primeiro, e pelas presenças de Beatriz e S. Bernardo, acompanhado longamente por Estácio, faz a sua “jornada transcendente, da abjeção das trevas à redenção da luz”. Cada uma das três partes em que o poema está dividido (Inferno, Purgatório e Paraíso) em 33 cantos, com mais um de introdução. A obra soma 100 cantos, número que significa a perfeição da perfeição, e soma 14.233 versos em “tercetos dantescos”. Dante e Virgílio começam por atravessar o rio Aqueronte, que separa os mundos dos vivos e dos mortos, na barca de Caronte. O barqueiro, assustado e incrédulo, pede a Dante que se afaste dos mortos, mas Virgílio esclarece que Dante tem uma permissão de Deus para fazer a viagem. Começam por avistar o Inferno, com nove círculos concêntricos: onde estão os pagãos virtuosos (limbo) e onde penam os pecadores da luxúria, da gula, da ganância, da ira, da heresia, da violência, da fraude e da traição. Cada um recebe um tipo diferente de tormento. E são descritos três vales da violência, dez fossos da fraude e quatro esferas da traição, para as diferentes formas das ações licenciosas. Nesses mundos perversos os dois visitantes encontram personagens conhecidas da Antiguidade clássica como Paris, Helena, Cleópatra e Dido. Então avistam a cidade de Dite, onde Lucifer é rei, e onde estão as Érinis, deusas da vingança, que têm o corpo coberto de sangue e a cabeça de cobra, e Medusa, que petrifica quem a olha. E o viajante dialoga com os condenados e procura compreender o que levou a estarem ali, encontrando o Papa Nicolau III condenado por simonia…

O TERMO DE UMA VIAGEM ESSENCIAL

Passando ao Purgatório os visitantes encontram seis partes – o rio Tibre, o ante-purgatório dos arrependidos à hora da morte; o baixo purgatório dos que perverteram o amor; o médio purgatório dos que não conseguiram amar; o alto purgatório dos que amaram em excesso e, no cimo, o Paraíso terrestre ou Jardim do Éden. A elevada montanha está dividida em sete degraus, correspondentes ao pecados capitais: orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria. Tratando-se da preparação para a entrada no Paraíso, os pecadores praticam as virtudes que não cultivaram na vida terrena. Ao sair do Purgatório, Dante despede-se de Virgílio, que não viveu a cristandade, não podendo por isso ultrapassar o umbral do Paraíso. É a formosa Matilde que fica com o poeta e começam por presenciar uma procissão onde se representam as virtudes e as glórias da Igreja. Então Dante é acompanhado pela bela Beatriz Portinari, modelo de virtudes, na visita das nove esferas celestes do Paraíso – Lua, Mercúrio, Vénus, Sol (como símbolo da prudência e do bom uso da teologia), Marte (sinal de coragem), Júpiter (lugar de justiça, onde, inesperadamente, se encontra o pagão Rifeu de Tróia), Saturno (da contemplação), Estrelas fixas (da Igreja triunfante) e a última esfera do universo físico que antecede o Empíreo, onde se dá a contemplação, o encontro com Deus, olhos nos olhos. Beatriz deixa Dante com S. Bernardo. É a teologia que comanda, sobre a essência de Deus – mas Dante, na reflexão mais elevada, confessa: “não é voo para as minhas asas”… Nunca tendo podido regressar à amada cidade natal, Dante morreu no exílio, mas tornou-se um verdadeiro símbolo dos valores da paz, da dignidade humana e da busca sincera da verdade.

Guilherme d’Oliveira Martins

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