HISTÓRIA SINGULAR E COMPLEXA
A cidadania baseia-se na liberdade e na igualdade, na dignidade humana e nos direitos fundamentais. As Constituições são a pedra de toque de um tal reconhecimento. O constitucionalismo português moderno corresponde a uma história singular e complexa, influenciada pelas condições políticas e sociais da primeira metade do século XIX. É a cidade do Porto que marca o início de um movimento político decisivo, como a Revolução de 24 de agosto de 1820. As invasões napoleónicas e o apoio britânico à independência portuguesa tiveram repercussões evidentes, na evolução das instituições. Na sessão que teve lugar, na Academia das Ciências, alusiva ao bicentenário da Constituição de 1822, com a presença do Presidente da Assembleia da República, o tema foi abordado com o rigor necessário. O melhor modo de comemorar um momento importante é refletir e estudar. Demonstrou-se, nesse momento, como as dificuldades sentidas na aprovação e na vigência da primeira Constituição também se deveram à coincidência entre a revolução liberal e a independência do Brasil. Contudo, se hoje celebramos os dois acontecimentos, como eventos de relevância nacional, a verdade é que não os podemos encarar de modo simplista sem a sua complexidade. De facto, de um lado e do outro do Atlântico, celebrou-se um elo intenso entre Portugal e o Brasil. Os dois acontecimentos ligam-se, pelos valores comuns que representam – a liberdade e a soberania – e pela convergência de fatores históricos, que permitem ao rei de Portugal D. Pedro (num caso especial, sem paralelo) ter protagonismo nas duas situações, como fator decisivo de mudança no sentido da abertura liberal, por contraponto à causa absolutista, que ver-se-á derrotada na Convenção de Évora Monte (1834) e no que se lhe seguiu.
A CONSTITUIÇÃO COMO CARTA MAGNA
Olhar apenas para as fragilidades do texto de 1822 seria entender de modo incompleto as condições históricas que pesaram na respetiva consagração (como foi salientado por Jorge Miranda). Com efeito, há uma geometria variável, de princípios e procedimentos, em que as influências inglesa, americana e francesa convergem, desde a soberania da Nação à separação e interdependência de poderes – condicionadas pela criação em 1815 do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Existindo já a independência brasileira de direito (pelo Reino Unido), esta associou-se às tensões económicas sentidas no território português, em virtude da inversão ocorrida na situação colonial com subalternização do continente. Discutir-se-á o modelo adotado, com a evolução do poder absoluto até ao poder mínimo do rei na Constituição, como referiu Vital Moreira, contudo o mais importante legado da revolução de 1820 foi, sem dúvida, o da nova legitimidade do constitucionalismo liberal moderno – assente na soberania nacional e na cidadania. Tem, pois razão Maria Lúcia Amaral ao usar a fórmula feliz de “vigência curta e influência longa”, uma vez que a Constituição de 1822 abriu caminho a um período baseado na cidadania (“Todos os Portugueses são cidadãos, e gozam desta qualidade” – artigo 21º); na soberania popular (“A soberania reside essencialmente em a Nação” – artigo 26º); na liberdade (“A liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe” – artigo 2º) e no primado da lei (“A lei é igual para todos” – Artigo 9º). E assim a ordem do Antigo Regime pôde ser superada, de modo atribulado, mas durável. Quando, de novo na cidade do Porto, D. Pedro capitaneia a jornada final que levará à vitória liberal, depois do desembarque do Mindelo, assume a legitimidade que tinha via aberta desde 1820 e da Constituição que a revolução de 24 de agosto gerou. Fosse através da Carta de 1826 ou da legitimidade democrática setembrista (1836), era a cidadania que se tornava um marco fundamental duma sociedade que desejava basear-se na dignidade humana e nos direitos fundamentais.
COMPROMISSO DURADOURO
É verdade que os excessos da Regência de influência britânica (em especial na condenação dos Mártires da Pátria), aliados à longa ausência da Corte no Brasil favoreceram a instabilidade e a fragilidade da primeira Lei Fundamental, no entanto a legitimidade do constitucionalismo (que emigração liberal também trouxe da Europa, de França e Inglaterra) e a condenação do absolutismo marcaram decisivamente a longa vigência da monarquia constitucional (analisada por Gonçalo Almeida Ribeiro). Houve lições positivas tiradas da Constituição de 1822, que estiveram presentes na evolução subsequente, na causa liberal, na regência da Ilha Terceira, nos decretos de Mouzinho da Silveira – e a Constituição de 1838 está muito presente na reforma da Carta Constitucional de 1826, fortalecida pela legitimidade constituinte de 1852, da Regeneração. A Revolução do Porto de 1820 e a primeira Constituição são, assim, insista-se, referências essenciais. É a democracia baseada na liberdade e no direito que se consagra. Cidadãos exemplares, homens de cultura e combatentes da liberdade, como Almeida Garrett e Alexandre Herculano reconheceram-no de modos diferentes, mas com um sentido convergente e audaz. Portugal na Balança de Europa exigia o primado da lei e do Estado de Direito, que a proclamação da Monarquia de Julho de 1830 em França e a chegada ao poder do governo liberal em Inglaterra facilitaram. E o certo é que o reformismo humanista orientado para o desenvolvimento continua na ordem do dia.
Guilherme d’Oliveira Martins
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