ENTRE CAUSAS E COISAS
Através de cerca de cem causas e de cinquenta coisas, Miguel Esteves Cardoso faz um sobrevoo de Portugal e dos portugueses, simultaneamente com sentido crítico e um especial afeto. Sendo anglófilo, filho de mãe britânica, formado na cultura inglesa, consegue ver a nossa realidade ao mesmo tempo de fora e de dentro. Tem, deste modo, a capacidade de se distanciar de todas as formas de provincianismo, com base nas qualidades de turista e de indígena, encontrando o que julga ser mais genuíno e autêntico numa curiosíssima identidade, capaz de não se levar demasiado a sério. “Em Portugal, diz MEC, ter amor às nossas coisas implica dizer mal delas, já que a maior parte delas não anda bem. Nem uma coisa nem outra constitui novidade. Nem dizer mal delas, nem o facto de elas não andarem bem. Será que se diz mal na esperança de que elas se ponham boas? Também não. As nossas causas são quase sempre perdidas. Porquê então?”. É esta a substância do livro, que se tornou um clássico. Ao longo das análises vê-se que nunca estarmos satisfeitos, como disse o Padre António Vieira. Achamos que deveríamos ser o “país mais perfeito do mundo”. E será que monopolizamos a maledicência para nos defendermos dos outros? Por alguma coisa será. “É fácil pensar que o Portugal Ideal, onde todas as coisas correm bem, já existiu. Não há português que não tenha a sua metade saudosista”. E fica a ideia de que o país sonhado ainda está para vir. E assim Esteves Cardoso diz que quase se orgulha de ser português e quase ama Portugal. E nesse quase está a distância necessária para não enlouquecer, “entre o que se quer e o que se vê”. Mas há a consolação de ainda procurar um português genuinamente português… Essa é a busca que acompanhamos ao longo dos textos agora relidos.
RAPOSA E OURIÇO – UM POUCO DE TUDO
Nesta nova edição, José Tolentino Mendonça começa por lembrar o fragmento de Arquíloco, talvez o poeta grego mais antigo que chegou ao nosso conhecimento, descoberto por Isaiah Berlin, onde se diz: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande”. MEC seria, nesta perspetiva, uma raposa irrequieta. Mas tal seria uma mera simplificação tosca, já que de baixo da sua pele e da sua escrita se esconde um sólido e obstinado ouriço – “que “insiste numa única preocupação, investiga somente a causa de uma coisa: Portugal”. E Eduardo Lourenço vem naturalmente à baila, no seu “Labirinto da Saudade”, não no que alguns leem de saudosismo, mas no que o ensaísta pensou verdadeiramente: “uma conversão cultural de fundo suscetível de nos dotar de um olhar crítico sobre o que somos e o que fazemos”. E a opção europeia, para o bem e para o menos bem, depois de 1986, passou a marcar decisivamente a nossa reflexão. “Tanto o ‘medinho’ protecionista, do Portugal dos Pequenitos, como a atitude do ‘obrigadinho’ servil e conseguidista são totalmente idiotas e reles”. Eis por que razão “A Causa das Coisas” merece uma releitura à luz dos dias de hoje. Para o autor, causa seria “tudo o que determina a existência de uma coisa ou acontecimento” e coisa “tudo o que existe ou pode existir real ou abstratamente”. Entretanto, houve muitas mudanças por toda a parte, o mundo mudou e nós, com ele. Mas o nosso espírito mantém-se e as exigências de lermos criticamente os mitos ganhou uma nova urgência. Continuamos a dever ter presente a história de nove séculos, que não se apaga facilmente com uma borracha.
UM PORTUGUÊS PACIENTE
“O bom português é um homem paciente, com uma paciência do tamanho da História. Sabe que Portugal já atravessou períodos piores e outros melhores, e está perfeitamente consciente que vive hoje num período que é indesmentivelmente assim-assim. Os períodos assim-assim são os mais difíceis de aturar, porque nem se assinalam com o épico das grandes tragédias (Filipes, terramotos, invasões), nem com a glória das grandes epopeias (Afonsos, descobertas, impérios). Os períodos assim-assim, que costumam ser morosos e são quase sempre patéticos, nunca aparecem mais tarde nos tomos de História”. “Um português só faz o que deve e só dá o seu melhor desde que todos os outros o façam também” – a isso se chama mediocridade. Não podemos esquecer o portuga, que é “o português elevado à sua máxima impotência” e o portuguesinho (talvez “valente”), que se distingue dos demais portugueses por estar contente – “Pode ser feiinho, mas é o nosso Portugalinho”… O “Português Suave” está “para o portuguesinho como o Ritz para os portugas e o SG Lights para os exilados, emigrados, estrangeirados e outros trânsfugas”. As entradas são várias, interessantes e surpreendentes. Por exemplo, o “Já agora”, que tantas dores de cabeça dá a quem deseja ter contas certas; a chatice de nada se fazer até ao fim; a corrupção de esperar a cunha e de cumprir um dever, descobrindo um desgraçado que execute o serviço; ou o ler – porque de todo o tempo que perdem os portugueses “não há eternidade como o tempo que perdem a não ler”… Por exemplo sobre o “Chá”, o importante não é a Rainha Catarina e o seu Chá levado para a corte britânica, mas o facto de a boa educação ensinar-se e o chá não. A boa educação é uma transfusão, o chá vem de dentro (toma-se de pequenino), como uma infusão. E sobre a falta desse elementar atributo, um “grunho” é uma criatura que logrou escapar ilesa do choque civilizacional. E nem o café brasileiro nem o cacau africano podem alguma vez compensar a nossa falta de chá… E no tema atualíssimo do Mar, lemos: “Antigamente era Portugal que ia pelo mar fora – agora é o mar que entra por Portugal dentro”. O que é uma identidade? É um conjunto de elementos capazes de ligar as raízes à realidade do dia-a-dia. Miguel Esteves Cardoso, neste seu reportório, vai até aos aspetos mais raros e misteriosos e contribui para o enriquecimento das bases de uma nova imagem de Portugal, que encontramos em Eduardo Lourenço, José Cutileiro, Maria Velho da Costa, Armando Silva Carvalho, Almeida Faria – como antes Ruben A., Alexandre O’Neill ou Nuno Bragança… As causas encontram as coisas e as coisas procuram as causas…
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença