Todos temos na memória as cenas marcantes do filme de Christian-Jaque “A Cartuxa de Parma” (1839) sobre o romance imortal de Stendhal (Henri-Marie Beyle 1783-1842) em que o triângulo amoroso, representado por Sanseverina – Maria Casares, Fabrício Del Dongo – Gérard Philipe e Clélia Conti – Renée Faure, permite acompanharmos uma das mais importantes referências românticas da literatura de sempre. O romance de Stendhal marcou toda a literatura europeia até ao século XX, não pertencendo apenas a uma escola ou a uma época, mas constituindo um modo a um tempo heroico e sentimental para ilustrar a História e a compreensão do género humano. Se falo do filme de 1948 é porque muitas gerações se deixaram apaixonar pela audácia e sensibilidade de Fabrício Del Dongo, pelo magnetismo de Gina Sanseverina e pela paixão sentida de Clélia Conti. Balzac admirou a construção narrativa, André Gide não teve dúvidas em considerar este o maior dos romances franceses e Tolstoi foi um leitor fiel das descrições de Stendhal, em especial no paralelo que encontramos entre a angústia de Fabrício, deambulando no cenário trágico de Waterloo, e a atitude de Pedro Bezukhov em circunstância semelhante. Stendhal inspirou-se nas leituras que fez de documentos sobre famílias antigas italianas, como os Farnese, aquando da sua estada como cônsul em Itália. Fabrício é um jovem aventureiro de família nobre, que admira Napoleão Bonaparte, como Julien Sorel, o outro grande herói de Stendhal, em “O Vermelho e o Negro” (1830), narrativa exemplar em que se associam as cores dos uniformes militares e da sotaina dos clérigos. É de Itália que “A Cartuxa de Parma” trata, associando a compreensão das ambições individuais à construção da unidade da pátria, como quisera Nicolau Maquiavel. Que papel teria o ducado de Parma e Placência no futuro que se anunciava, em lugar da fragmentação medieval? São limitadas as ambições de Fabrício, que prefere viver no mundo aristocrático, pensar no imediato, divertir-se, pensar num tempo de sonho e de prazer. No entanto, deseja conhecer e aproximar-se de Bonaparte, símbolo da coragem e de um tempo novo. Demarcando-se do pensamento de seu pai e da orientação monárquica, parte ao encontro do que será o canto do cisne do Imperador em Waterloo. Nesse gesto de audácia e de rutura conta com o apoio de sua tia Gina Pietranera, que se torna duquesa Sanseverina, amante do poderoso Conde Mosca. Mas a afeição entre tia e sobrinho torna-se intensamente amorosa. A dualidade entre o amor fraternal e o carnal revela-se dramática. Gradualmente, Fabrício compreende, contudo, que não amava a tia como mulher. Preso, na torre de Farnese, em virtude da complexa trama política em que se vê envolvido, Fabrício apaixona-se pela filha de um general do partido da oposição ao Conde Mosca, Clélia Conti. Essa paixão torna-se o centro da narrativa romanesca, mas trata-se de um amor impossível, não só porque Fabrício está preso, mas também porque a sua família é inimiga jurada da do pai de Clélia. Graças à intervenção de Gina, Fabrício será libertado e como clérigo e Monsenhor vai exercer o seu múnus, longe da amada. Os rumores sobre uma ligação a uma jovem, Anetta Marini, levam Clélia a ir ouvir o sermão do Monsenhor Fabrício e o encontro entre ambos leva ao renascimento da paixão, iniciando-se uma ligação secreta que vai durar três anos. Entretanto, morre o Arcebispo e Fabrício sucede-lhe. Mas como o novo prelado não pode encontrar-se com Clélia durante o dia, exige que Sandrino, o filho que nascera desse amor secreto venha para junto de si. Os amantes imaginam um estratagema, simulando a morte da criança. Mas Sandrino cai, realmente, gravemente doente e morre. Esta morte é vista por Clélia como uma severa punição divina; e não se perdoará por esse trágico desenlace. Com a morte de Clélia, Fabrício vende todos os seus bens e distribui-os, retirando-se para a Cartuxa de Parma – onde morrerá um ano depois. A duquesa Sanseverina não sobreviveu senão muito pouco tempo a Fabrício, que ela adorava… E com Mosca riquíssimo, o ducado de Parma conhece uma era de liberdade com o seu jovem príncipe Ernesto V…
Agostinho de Morais