De 18 a 24 de Fevereiro de 2008
“Portugal como Destino, seguido de Mitologia da Saudade” de Eduardo Lourenço (Gradiva, 1999) constitui uma das obras emblemáticas do autor, onde se encontra um conjunto de ensaios, plenos de estimulantes desafios, sobre a cultura portuguesa e sobre as nossas dúvidas e angústias colectivas, sempre na perspectiva de tentar perceber como conseguimos durar ao longo dos séculos e ultrapassar inúmeras vicissitudes, apesar de um forte sentido autocrítico e de um pessimismo, que muitos confundem com derrotismo.
Antero de Quental, pintura a óleo de Columbano Bordalo Pinheiro, 1889, Museu do Chiado.
QUE DESTINO?
«Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino” – diz o ensaísta -, “isto é, simbolicamente, como se existisse desde sempre e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa a convicção que confere a cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos ‘identidade’». É daqui que parte a reflexão de Eduardo Lourenço. E o caminho dessa identidade ou desse destino fez-se, no caso português, a partir da “fragilidade”. No período medieval, Castela ou Aragão pareceriam mais duráveis e consistentes. Mas, à maneira judaica, o reino de Portugal foi-se afirmando como se de um “povo eleito” se tratasse, primeiro mais “europeu”, no período da reconquista, e depois, a pouco e pouco, foi-se tornando uma “ilha”, no sentido vivencial e mítico. O fim do império, no declinar do século XX, teve o condão de revelar como fomos “ilha” nos descobrimentos, tal como, já no século XVII, esse entendimento viera à tona. De “ilha imperial gloriosa”, Portugal transformou-se em “ilha perdida”, na qual se esperava uma ressurreição do passado, esperança de que o sebastianismo foi a força de expressão popular. Com razão, Eduardo Lourenço fala do “messianismo intrínseco da cultura portuguesa”. E é o Padre António Vieira que, na “História do Futuro”, transforma o conceito de “ilha perdida”, ligado à memória de um rei morto, num entendimento de “Portugal restaurado”. “António Vieira não era um louco rematado, antes um sagaz observador do mundo, diplomata insigne com o seu quê de maquiavélico, entenda-se, ao serviço de causa em si boa, como é próprio de um eminente jesuíta”. Teve assim uma visão global, e pensou o império à luz dos entendimentos de uma “nação eleita” e de um “império espiritual”. E se Vieira fala de milagre e de profecia, a verdade é que concebe uma vontade legitimadora, capaz de contrariar o fatalismo e a decadência. Assim, o Quinto Império foi um apelo, um desafio. Depois da decadência, como depois do cativeiro da Babilónia, poderia haver um novo tempo de redenção e glória.
REFUNDAR PORTUGAL? – Os séculos XVIII e XIX caracterizaram-se por uma tensão entre os que reclamavam o fim do “reino da estupidez” e a emergência de uma regeneração colectiva, de um lado, e o Portugal profundo e acomodado, de outro. E quando Garrett e Herculano se propuseram “refundar” Portugal, fizeram-no ligando o respeito pelas raízes históricas e populares, vistas sob o prisma da moderna historiografia crítica, à abertura de horizontes de um cosmopolitismo liberal. Portugal tinha de ser considerado na “balança da Europa”, para que pudesse afirmar-se universalmente. Portugal deveria, deste modo, tornar-se sinónimo de vontade e de liberdade. Mas havia que contar com dois Portugais – o da exaltação e da permanência, e também o da Inquisição, do “pendor tirânico”, do fanatismo e dos “fumos da Índia”. O certo, porém, diz-nos Eduardo Lourenço, é que “Portugal existe porque existiu e existiu porque Camões o salvaguardou na sua memória, como a dos Hebreus se perpetua na Bíblia”. E a nossa identidade ganharia vida como acto de lembrança e de vontade. E a saudade tornou-se garrettianamente o “delicioso pungir de acerbo espinho”, mas também “penhor de ressurreição”. Uma mitologia da imanência procurou, assim, completar as tradições mais antigas, e o romantismo proclamou a ideia de que era possível vencer o Portugal velho e recuperar a força de uma “regeneração”, liberal, aberta, culta e voluntariosa.
REPENSAR OS MITOS
Os mitos deveriam ser repensados à luz de uma nova mentalidade, avessa às lendas insusceptíveis de demonstração crítica. Camilo Castelo Branco procurou encenar a vida portuguesa como “teatro de sentimentos, palco de conflitos entre o dever e a fatalidade, o bem e o mal”. E Júlio Dinis desenhou um país pequeno, politicamente pacífico, à sombra de Inglaterra. Mas foi a chamada Geração de 70 que agitou as águas, partindo da crítica para a formação de uma vontade emancipadora: “pela primeira vez, uma doutrina assumidamente subversiva encontrava uma dimensão cultural entre nós”. Mas, mais do que isso, Antero e os seus vão interrogar-se sobre o estatuto da decadência e das suas causas, estendendo estas à Península Ibérica, numa perspectiva de abertura de horizontes e fronteiras. Antero de Quental apresentou-se então como profeta, invocando raízes religiosas para a nova revolução, identificando socialismo e cristianismo no mundo moderno: “o cristianismo foi a revolução do mundo antigo: a revolução não é mais do que o cristianismo do mundo moderno”. A modernidade deveria actualizar as aspirações antigas. Haveria que “europeizar” Portugal e que libertá-lo do seu arcaísmo. Como? Pensando, agindo, exercendo a crítica e a autocrítica, usando a ironia. Longe do derrotismo ou do fatalismo, e longe ainda das meras hagiografias (que algumas “desleituras” proporcionaram), a geração de Antero de Quental erige um edifício crítico, que será lido diferentemente por correntes de opinião bastante distanciadas entre si, mas que é coerente – ligado à exigência de emancipação. E não se diga que o momento final (da “Ilustre Casa” ou do “Nun’Álvares”) rompe com os primeiros passos, porque literária e culturalmente os caminhos renovadores se mantêm…
MOBILIZAR PARA QUÊ?
Se os intelectuais de setenta procuraram um sobressalto colectivo, que fosse além do romantismo liberal, mas que conciliasse liberdade e igualdade, autonomia e justiça, a verdade é que no século XX quase todos procuraram seguir esses passos, ora num sentido crítico, mais ou menos radical, ora num sentido transformador económico, social e cultural. Da direita à esquerda, não houve indiferença em relação a essa herança. D. Sebastião, no centro da mitologia portuguesa, deveria dar lugar a uma “transfiguração mítica ou desmitificação exorcística”, o que envolveu Nobre, Pascoaes, Pessoa, Sérgio, Régio, Torga, Sena e tantos outros. África e Europa digladiaram-se, autarcia e abertura, auto-suficiência e complementaridade, acomodação e emancipação. E o século XX foi expressão de vários ciclos em que o mito “sebastianista” foi reemergindo – desde o republicanismo ao “Estado Novo”, de modo radicalmente diverso. A ideia de “renascimento” de Portugal foi recorrente e quando, em 25 de Abril de 1974, houve a “vontade de inventar um outro destino para Portugal”, um destino inédito, tivemos novamente essa ideia de definição singular de um destino. “Nunca tivemos, a sério, autênticos movimentos revolucionários, salvo no estilo inimitável do Gattopardo”. Fomo-nos sempre repetindo, com o sucesso próprio de termos persistido colectivamente com a força da fragilidade, como desde os primórdios. A ideia de decadência foi-se repetindo e alimentando a necessidade gradual de irmos partindo e regressando. E hoje onde estamos? «Neste último quarto de século realizámos muitas e belas coisas, reparámos algumas injustiças, melhorou a qualidade de vida para a generalidade dos cidadãos, mas falhámos o que se chama a ‘revolução cultural’». Afinal, demos a volta ao mundo apenas para descobrir a nossa “maravilhosa imperfeição”…
E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença
Guilherme d’Oliveira Martins