A VIDA DOS LIVROS
De 11 a 17 de Fevereiro de 2008
“Marginálias” é um conjunto de textos de Ramón Gómez de la Serna (1888-1963), com ilustrações de Almada Negreiros (1893-1970) (texto bilingue com tradução para português de José Colaço Barreiros, Bedeteca de Lisboa, Assírio e Alvim, 2006), com prólogos de Juan Manuel Bonet e de Fernando Cabral Martins. A edição partiu da exposição “El Alma de Almada El Impar: Obra gráfica 1926-31) e permite-nos ter contacto com as ilustrações de Almada Negreiros, numa fase crucial da sua afirmação, em contacto com uma das referências da vida cultural espanhola do seu tempo. Gómez de la Serna foi, de facto, uma das figuras mais admiradas do “vanguardismo”, que colaborou nas principais revistas do seu tempo (Revista de Occidente, Cruz y Raya, Sur) e foi autor de uma obra que ainda hoje é lembrada em Espanha e na América Latina, em especial na Argentina, para onde foi viver e onde morreu.
Desenho de José de Almada Negreiros. Museu do Chiado. Lisboa.
DIÁLOGO DE VANGUARDAS
Ramón e Almada encontraram-se em Madrid em meados dos anos vinte e descobriram preocupações comuns e linhas de pensamento convergentes: as raízes simbolistas, o futurismo, a valorização do humor, a fascinação pelo que se estava a passar em Paris de realmente novo. Gómez de La Serna escreve em “La Esfera” e em “Nuevo Mundo”. São contos, reflexões, apontamentos, marginálias. É a cultura da cidade que se exprime e manifesta, através de diversas pistas e dos temas mais inesperados e variados. E Almada Negreiros é quem ilustra e acompanha o escritor. Dir-se-ia não ser possível fazer passar as mensagens sem recorrer ao ilustrador, que estando no mesmo comprimento de onda, compreende perfeitamente qual o efeito pretendido. E assim é. Um exemplo: “A moda escolhe os animais mais estranhos para se adornar com as suas plumas e as suas peles. A elegante que se adornasse com pele de gambosino seria a mais elegante do mundo, porque o gambosino é o animal mais inlocalizável porque nunca existiu”. A partir daqui tudo é possível, o humor como crítica, o non-sense como provocação, a ilusão como chave de entrada para um mundo inesperado… Os temas sucedem-se, num busca sôfrega do quotidiano e das suas surpresas: o cinematógrafo, um piano de cauda preto, a manicura de Lucrécia Borgia, a coleccionadora de pisa-papéis, a raqueta japonesa, o candeeiro de gasolina, a maja ao espelho, as cinco sombrinhas, os banhistas da Puerta del Sol, as grandes barbearias do cinema, os segredos da sala de espera, as frutarias, os brinquedos alemães, a decadência de um vendedor de cães, os marinheiros de Madrid, os objectos de escrivaninha…
MÉTODO AFORÍSTICO
O circo, lugar mítico para Almada e também para Ramón, é motivo especial para jogos de palavras e de ideias: “quando os trapezistas se agarram pelas mãos no ar, dão um aperto de mão de verdadeiros náufragos, verdadeira saudação de cortesia sobre os abismos”. E esse circo funciona como uma extraordinária metáfora da vida humana: “o equilíbrio que faz o urso sobre a bola, é o que fazemos todos os dias sobre o globo terrestre”. Por outro lado, presenciamos o que é impossível, mas impraticável: nos “circos portáteis e ambulantes que são transportados por animais, o ultimo carro, o que fica muito para trás na caravana, com o qual não se pode contar nas primeiras representações, é o puxado pelas tartarugas”. Pelo método aforístico, Ramón usa o paradoxo e o absurdo para demonstrar que só podemos entender a ilusão através do método dos ilusionistas. E Almada Negreiros acompanha escrupulosamente tudo isso, com a sua pena irrequieta de desenhador repentista, dispondo de um traço seguro de humorista experiente e a atenção sagaz de quem demonstra ao leitor a actualidade do tema trazido pelo escritor. Sem as ilustrações os textos perderiam metade da sua força, não porque houvesse fragilidades de estilo ou de poder de sedução, mas porque a imagem é essencial para poder entender-se plenamente o que está escrito. Neste diálogo de vanguardas, Gómez de la Serna faz com Almada um tandem necessário, esse mesmo que o leva a elogiar o companheiro de “marginálias”: “Almada Negreiros é o ser ímpar no meio da pintura e da literatura portuguesa, sobre as quais salta de trapézio em trapézio. É necessário conhecer o espírito de Lisboa para ter-se uma ideia perfeita deste ser feito de nostalgias e de ilusões loucas que se carteia com a lua”. Como que por encanto, o futurista espanhol sente-se alma gémea do seu companheiro vindo de Lisboa, que interpreta fielmente as suas preocupações e mensagens.
ALMADA VISTO PELO AMIGO
«Nos “cabarets” de Lisboa, que são como dourados palácios assaltados pela galanteria, Almada revolteia sobre os decotes e oferece as rosas que furta nas pistas em que celebra o banquete do grande negócio. (…) Almada Negreiros é o artista que resume a delicadeza, a inquietação e o diletantismo de Lisboa. É esse artista sem saída que o que lhe importa é viver a graça da sua cidade e andar em largos passos pelas ruas que dão para a lua e subir a uma janela para colher uma flor». Ser imaginário, arlequim lunar (como o Pierrot de Schönberg), personagem improvável, fora e dentro do seu tempo, antecipando outros momentos, tornando-se primitivo das gerações futuras, sempre disponível para voltar a começar, o artista é o grande revelador. Almada disse, por isso mesmo: «Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas». No tandem com Ramón Gomez de la Serna (com a amizade de Ortega, de Silvina Ocampo, de Jorge Luís Borges ou de Bergamin), ele, José de Almada Negreiros, lança pela ilustração essa capacidade necessária de “inventar outra vez as palavras que já foram inventadas” ou, como disse noutro lugar, de poder “chegar ao mundo sempre pela primeira vez a cada instante”. E Ramón entende-o melhor do que ninguém: “Almada, numa palavra, reflecte com os seus desenhos ou com os seus escritos o mais fino dessa melancólica e feliz Lisboa, dando um nobre ar de brasão a cada coisa, soprando-as para o ideal como se fossem caravelas”. Há como que um entrosamento, uma simbiose íntima, que Ramon Gómez assume claramente e que nós bem entendemos ao olhar maravilhados para os painéis da Rocha de Conde de Óbidos e de Alcântara, relendo em imaginação as peripécias da Nau Catrineta (“acima acima gageiro, acima ao tope real”…).
CIDADES MÁGICAS
O encontro dos dois amigos, pondo em contacto as vanguardas peninsulares, permite-nos, à distância do tempo, oitenta anos depois, imaginar os sonhos dos modernistas, citadinos, cheios de preocupações com o futuro e as suas cidades mágicas. Olhemos o exemplo dos marinheiros, que Almada desenha estilizadamente, simplificados, mas paradigmáticos. Lado a lado, os dois marujos representam o sonho e a realidade, o mar e a terra, o porto e o convés…Mas nesta circunstância concreta são marinheiros de Madrid, marinheiros de água doce ou marinheiros de água nenhuma. Diz Ramón: “Os marinheiros de Madrid não têm canções marinheiras para entoar, e nunca andarão bêbedos pela cidade, porque nada os desculparia da sua bebedeira, dado que não têm ao pé essas dramáticas águas movidas, encrespadas, enjoadoras, pois não é coisa de considerar porto o Porto de Guadarrama”… Sempre o jogo da ironia, que Almada bem entende e que projecta nas suas ilustrações, com o traço firme de um “simplicissimus”. Aliás, as “greguerias” de Ramón G. de la Serna, com um misto de sentimento e de ironia, inconfundíveis, com o quotidiano em fundo, quotidiano inesperado e sempre cheio de humor, permitem-nos compreender melhor o nosso lugar no mundo.
E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins