MARGENS DO MONDEGO
“Uma coisa sei de certeza: Que nunca me arrependi de ter ido para Coimbra. Lá ganhei novos amigos. De lá saiu a presença. Lá passei pelo menos alguns dos anos mais felizes da minha vida. E creio que a minha criação literária lucrou com a ida para Coimbra, pois lá achei elementos para um fecundo ambiente literário que não acharia no Porto”. É o próprio José Régio quem o confessa, num dos seus últimos escritos, Confissão de Um Homem Religioso (1971), esta sua ligação muito especial a Coimbra. É verdade que as raízes de Régio estão em Vila da Conde e aí sentimos a força das bases telúricas, éticas e literárias. Mas o núcleo das amizades do poeta e romancista, encontramo-lo na cidade do Mondego, em Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões, Casais Monteiro, Edmundo de Bettencourt, Miguel Torga, Vitorino Nemésio ou Afonso Duarte… Aí começará a publicar (Poemas de Deus e do Diabo, 1925) e a ter contacto com a literatura como realidade viva, ligada necessariamente ao quotidiano e à cidadania. E no primeiro livro de poemas surge logo a associação a seu irmão Júlio (Saul Dias), desenhador e pintor que é uma extraordinária referência do segundo modernismo, com vincada influência de Chagall. Depois, nas andanças docentes, Régio fixará em Portalegre o seu lugar de vida, em alternância com Vila do Conde. Para o biógrafo e intérprete fiel de Régio, Eugénio Lisboa: “o mais importante da sua biografia decorreu, como é o caso de tantos de nós, dentro de si próprio. As suas tempestades foram sobretudo interiores e são essas que irrigam, com vigor o tecido da sua obra” (José Régio ou a Confissão Relutante, Rolim, 1988). A consideração de Eduardo Lourenço sobre o carácter da obra de Régio e sobre a natureza da presença levará, no entanto, a uma estranha acumulação de equívocos, que só uma leitura mais atenta de “Presença ou a contrarrevolução do modernismo” (“Comércio do Porto”, 14.6.60) poderá esclarecer. O próprio Eduardo Lourenço preocupou-se em clarificar o que tinha dito, acrescentando a uma nova versão do texto o qualificativo “português” ao modernismo e um ponto de interrogação no final, procurando afastar qualquer entendimento político ou literal nessa ideia. Deste modo, Eugénio Lisboa, na comparação entre os dois modernismos, o de Orpheu e o da presença, afirma mesmo: “o primeiro modernismo foi um momento de convulsão e o segundo um momento de reflexão e consolidação” (Ibidem.). Um e o outro completam-se e diferenciam-se. E até se percebe que Nemésio tenha preferido, em dado momento, criar um outro órgão de ideias – a Revista de Portugal (1937) talvez menos contaminada com a proximidade dos modernismos… A razão parece hoje irónica, mas foi invocada.
É VIVO O ORIGINAL
“Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de uma personalidade artística. A primeira condição de uma obra viva é pois ter uma personalidade a obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos, superficialmente, o que o diferencia dos mais (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjetivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo, o adjetivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro… Eis como é falsa toda a originalidade, calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas – mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre estas qualidades, o produto destes temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afetadas, semelhantes qualidades não passarão de um truque literário” (presença, nº 1, 1927). Eis o programa de Régio, que prefere, na sua batalha pela “Literatura Viva”, afirmar: “à personalidade do artista-criador nada proíbe a presença senão que se falseie; nada impõe senão que se revele” (“O Primeiro de Janeiro”, 25.10.44). No entanto, se desconfiava das originalidades “demasiado exibicionistas”, acusava de conformismo a falta de originalidade e a falta de sinceridade. Numa palavra, o certo é que a presença tornou-se o verdadeiro arauto que exprimiu quão relevante e visível foi a geração de Orpheu.
O SEGUNDO MODERNISMO
Todavia, o segundo modernismo era, essencialmente, um momento de reflexão e consolidação – e é essa distinção que Eduardo Lourenço quis fazer, de modo metafórico. Aliás, o próprio Régio assume esta ambiguidade, quando põe a dialogar, em A Velha Casa, Lelito com seu irmão João, e este diz: “Tornas falsas muitas coisas que são em si verdadeiras e sinceras”. E se o tema político merece toda a atenção tal deve-se à independência da revista e dos seus animadores, acima de toda a suspeita, e sob muitas desconfianças. Não houve, de facto, conciliação com o regime nascido em 1926 – vejam-se, por exemplo, a publicação do texto fortemente crítico de Raul Leal, aquando da homenagem coimbrã a António Correia de Oliveira (1930); a identificação de Régio relativamente à posição política de António Sérgio; e a tomada de posição de Guilherme Castilho, José Marmelo e Silva e João Campos, quando a presença fechou as portas (1940), dando ênfase à fidelidade da revista aos valores do espírito que estavam a ser destruídos pelos senhores da guerra. O modernismo não era, assim, uma receita, mas uma atitude: “qualquer mestre de hoje só é modernista na medida em que, sem ter de negar seja qual for das descobertas vitais do passado, se encaminha para novas descobertas e antevê novos mundos… que podem não ser mais do que a imprevista sondagem dos mundos já conhecidos” (presença, nº 23, dezembro de 1929). Régio foi sempre um escritor verdadeiramente livre, e encontramos nele: a compreensão da renovação da cultura portuguesa no século XX, com a geração de Orpheu, mas também com Teixeira de Pascoaes e o melhor da Renascença Portuguesa; ou com a consideração do modernismo não como uma escola ou um grupo, mas como uma atitude orientada para a compreensão dos novos mundos; na interrogação aberta e inconformista da transcendência – na linha de Dostoievski, Tolstoi, Proust, Claudel e Gide. Régio não é apenas poeta – é sobretudo dramaturgo, ensaísta e romancista, e nesses domínios encontramos alguma da melhor expressão da sua criatividade. David Mourão-Ferreira dirá: “Penetrante, arguto, tão apto por vezes para a síntese impressionista como para a análise psicológico-literária…”. A 22 de dezembro de 1969, em Vila do Conde, deixou-nos José Maria dos Reis Pereira, depois de uma vida de pedagogo, de escritor, de dramaturgo, de romancista, de novelista, de poeta, de contista, de ensaísta, de cronista, de memorialista. Foi há cinquenta anos. A sua obra multifacetada permite-nos compreender a existência humana através da literatura e da arte. E hoje voltamos a ler: “Era a hora do estudo da tarde, e Lelito pensava. As Catilinárias abertas na carteira, o dicionário à direita, o caderno de significados à esquerda e o lápis na mão – pareciam demonstrar que Lelito prepareva a sua lição de latim. Mas Lelito não pensava nas Catilinárias. Na realidade nem pensava…”
Guilherme d’Oliveira Martins
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