A VIDA DOS LIVROS
De 28 de Janeiro a 3 de Fevereiro de 2008.
A História Política tem ganho uma nova importância e por isso escolhemos o livro de Maria de Fátima Bonifácio “Estudos de História Contemporânea de Portugal” (Imprensa de Ciências Sociais, 2007), onde encontramos análises e reflexões que nos permitem compreender melhor o motivo deste renovado interesse, bem como a necessidade de dar maior atenção a esta disciplina. Num momento em que o vazio de valores se associa à indiferença, torna-se indispensável recorrer à investigação e ao estudo dos temas de História Política como forma de tentar perceber o papel das pessoas e da sociedade, a evolução complexa dos acontecimentos e a pluralidade de factores que intervêm na vida colectiva.
Biblioteca joanina da Universidade de Coimbra (século XVIII).
QUE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA?
A obra reúne doze artigos que a autora tinha dispersos e que vão desde o setembrismo à historiografia do Estado Novo, passando pela análise do cabralismo, do primeiro governo do partido histórico, da vida parlamentar do século XIX, da influência dos governos (“o maior patrono de Portugal”) nos actos eleitorais, bem como pela reflexão sobre a importância da narrativa histórica e biográfica, ilustrada magnificamente pelos casos de Saldanha, Fronteira e Palmela, figuras marcantes do liberalismo oitocentista. E o certo é que sentimos, ao longo da obra, uma especial preocupação em partir dos acontecimentos e da sua interpretação, através da utilização crítica das fontes disponíveis. Sem cuidar da História como exercício de edificação ou de lição moral, do que se trata é de entender os acontecimentos, o seu encadeamento e as suas sequelas, de modo a ligarmos a memória histórica, a narrativa e a realidade humana. E afirma a autora sobre a valorização das narrativas: “Pessoalmente, desejaria que a história se assumisse como disciplina literária e se libertasse da tirania científica das ciências exactas, exercida por intermédio das ciências sociais. (…) Hipnotizada pelo rigor e neutralidade dos números e da quantificação, chegou a desejar a possibilidade de reduzir todas as suas asserções à pureza lógica de uma equação matemática” (p. 215). A história como ciência social tem, no entanto, as suas especificidades próprias, que devem exigir um tratamento adequado dos instrumentos a que recorre. Com efeito, usa como matéria-prima a própria vida, constituída pela tensão e pelo diálogo permanentes entre o previsível e o imprevisível, entre o determinado e o discricionário, entre a vontade e o acaso. Por isso, o renascimento da narrativa (que vai muito para além da História Política) surge como uma exigência para a melhor compreensão dos actores e dos acontecimentos. E não se diga que o subjectivismo prevalece sobre a crítica. Não. O que se passa é que pela narrativa ligamos as fontes e a sua crítica à complexidade da vida. Não se trata de “inventar” ou de usar a imaginação para colmatar as lacunas ou as brechas encontradas na investigação historiográfica, mas sim de integrar literariamente o uso equilibrado da heurística e da hermenêutica. “Por que é que Brutus matou César?! Por mais verosímil e convincente que seja a resposta, ela é insusceptível de ser ‘cientificamente’ verificada” (p. 216).
ABENÇOADO RETORNO…
Em vez de séries estatísticas ou de uma qualquer tentativa insonsa e inodora de descrever os factos, urge ligar equilibrada e objectivamente os elementos disponíveis, apresentando-os com rigor, mas usando bem ideias e palavras. Sem desconhecer as séries estatísticas, quando úteis e necessárias, o que importa é integrá-las, de modo equilibrado, na compreensão do tempo humano. Ainda recentemente José Mattoso, na biografia de D. Afonso Henriques, ilustrou bem como deve fazer-se para ajustar a apresentação dos factos e o modo atractivo de o fazer. Sempre que há uma lacuna, o historiador assinala-a e se não há forma de encontrar explicação convincente di-lo expressamente. Daí a necessidade de recusar a lógica da ficção. Com efeito, “contrariamente à ficção, os factos estão sujeitos a verificação documental e, diversamente do realismo mágico, por exemplo, a história tem de respeitar regras de inferência conformes à lógica aceite pelo senso comum e tem de satisfazer requisitos de coerência exigidos pela lógica” (p. 217). A percepção de cada um será diferente de caso para caso, mas o importante é ser capaz de comunicar e de transmitir. De Fernão Lopes a Alexandre Herculano vai um longo caminho, mas quem duvida da genialidade narrativa de ambos? E é importante saber a opinião do historiador “sobre o mundo: sobre os homens e o que os move, sobre o poder, sobre a riqueza e miséria, sobre a ambição e a fraqueza, sobre os políticos, sobre a guerra, sobre a sociedade, sobre as causas do fracasso e sobre os meios do sucesso” (Ibidem). E A.J.P. Taylor demonstrou na sua obra e na sua investigação que nunca foi obrigado a rebaixar a qualidade científica e a erudição pelo facto de cultivar a narrativa histórica como disciplina literária.
ALGUNS EXEMPLOS
Nos vários ensaios que constituem os “Estudos” encontramos propostas de revisão de interpretações muitas vezes repetidas, mas desmentidas pelos resultados das mais recentes investigações históricas. Quanto ao “setembrismo”, a autora contradiz a ideia segundo a qual o proteccionismo dividia cartistas e setembristas. Afinal, bem vistas as coisas, notava-se um significativo consenso entre as forças políticas antagónicas sobre a necessidade de proteger a produção nacional. Sobre Costa Cabral, analisa a sua doutrina, ancorada na Carta Constitucional e na Rainha, apesar do poder militar frágil. E assim centralizou a administração, reformou o sistema fiscal, pediu dinheiro emprestado, lançou um plano de obras públicas confiado às companhias credoras do Estado. Mas essa concentração inaudita de poderes desvaneceu-se subitamente, pela corrupção e pelo desaparecimento da ameaça radical, que a Regeneração afastou…Na “história de um nado-morto”, falando do primeiro ministério histórico, entre 1856 e 1859, analisa o fim do consensualismo regenerador, gerado na cruzada anti-cabralista. E foi aí que nasceu a ideia de rotação, tão útil ao poder moderador do rei. Mas o que Alexandre Herculano quis, ao romper com a amálgama regeneradora (para a qual contribuíra ao inspirar o movimento de 1851), foi evitar a paz podre dos interesses económicos. No entanto, o que prevaleceu foi a incómoda questão religiosa, transversal às diversas famílias políticas liberais. O governo histórico do marquês de Loulé viveu e morreu mergulhado em contradições, até porque o seu chefe defendia a ideia de uma “fusão” que recuperasse a pureza de 1851, o que era absolutamente irrealista, até porque havia fortes correntes radicais (presentes nos dois partidos) que desejavam ter voz activa. A análise do parlamentarismo do século XIX (a partir da conciliação entre a soberania régia e a soberania nacional) e da poderosa influência dos governos nos actos eleitorais (“o maior patrono de Portugal”) conduz-nos ao peso insofismável do “caciquismo burocrático”, o que leva a compreender que na “lógica do rotativismo” não era o povo que elegia mas as circunstâncias que o rei interpretava e que (salvo a única excepção de 1870) levaram a que as eleições estivessem de antemão marcadas. Não se tratava, porém, de uma fraude institucionalizada, mas de uma regra, segundo a qual “cabia aos governos fazer e vencer as eleições uma vez nomeados pelo rei” (p. 207). Eis alguns casos a merecer todo o interesse.
RELÍQUIA DO PASSADO
E terminamos voltando a citar Maria de Fátima Bonifácio, a propósito do papel da narrativa na época pós-histórica: «O “historiador-cidadão” é uma relíquia do passado. O lugar dantes detido pelos “ensinamentos” da história é hoje em dia ocupado pelas “conclusões” da sociologia e da economia. História propriamente dita – a história narrativa – lêem-na em benefício próprio e privado os que procuram instruir-se por e com prazer. Mas para que se diga que a necessidade de sentido moral se degradou em mero pretexto de divertimento seria necessário mostrar que é frívolo o prazer que retiramos de ouvir um quarteto de Beethoven ou de ler um romance de Flaubert» (p. 239).
E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença
Guilherme d’Oliveira Martins