A VIDA DOS LIVROS
De 14 a 20 de Janeiro de 2008.
Paulo Mendes Pinto assina nas edições Quasi um pequeno ensaio de cerca de sessenta páginas com o título “Conhecimento de Deus – Ensaios em torno do Saber, da Omnisciência, do Monoteísmo” (2007), inserido na colecção Histórias da Ciência. O autor tem-nos habituado a uma reflexão muito séria e aberta sobre as religiões, como aqui demonstra de novo, num registo que se torna cada vez mais necessário, uma vez que, como têm insistido personalidades marcantes como Umberto Eco, Hans Küng e Régis Debray, importa preencher um vazio tremendo a que hoje se assiste no tocante ao desconhecimento das raízes culturais e religiosas na nossa sociedade, uma vez que essa ignorância tem aberto o caminho à intolerância, aos fundamentalismos, à magia e à irracionalidade com que deparamos.
Miguel Ângelo, David, 1504, Galleria dell’Accademia, Florença.
UMA VISÃO AMPLA
O ensaísta aborda o tema com uma preocupação evidente de seguir o critério do rigor crítico, a fim de que o leitor possa sair desta leitura com conhecimento do tema, ou pelo menos com pistas suficientes para poder aprofundá-lo adequadamente. E consegue-o, plenamente, apesar de se tratar de um texto propositadamente sintético. Prevalece o factor pedagógico, o que pressupõe segurança e à-vontade nos temas, que facilitam a tarefa de quem lê. E porque o tema é complexo, seguimo-lo historicamente desde os sumérios, à Babilónia, a Canaã, ao Egipto Antigo, à Grécia, a Roma e aos mundos da Bíblia e do Alcorão. Daí que “o elo destas linhas” seja a “busca de elementos estruturantes de pensamento, comuns a parte da Bacia do Mediterrâneo, que possam ter concorrido para a criação de uma ideia de Deus único e de um princípio a ele associado, a omnisciência”. E é muito curioso verificar como este impulso unificador e universalista abriu caminhos para o espírito científico e para uma cultura contemporânea assente nos direitos fundamentais. “A ciência irá desenvolver até bem próximo de nós esta visão global do universo. Religião e ciência andarão de mãos dadas, não porque tenham sido aliadas, mas porque se municiavam da mesma linguagem e da mesma forma de encarar os fenómenos”. A ciência corresponde, deste modo, à “pesquisa não teológica” relativamente a diferentes aspectos que conduziram a humanidade ao divino.
OMNISCIÊNCIA E PRIMADO DO SABER
No fundo, a ideia de omnisciência de Deus (ao lado da omnipresença e da omnipotência) está intimamente ligada à organização científica, segundo princípios lógicos e perceptíveis. Daí a importância da dimensão social dos monoteísmos e da sua evolução, que conduziu à abrangência da ideia de Lei e de universalismo. De um deus concebido num mundo mítico povoado de forças incompreensíveis chega-se à ideia de um Deus, primeiro ligado à ideia de “povo eleito” e depois à de mensagem universal. A Moisés é dito: “Eu te exporei todos os mandamentos, leis e preceitos que lhes ensinarás e que eles cumprirão na terra que Eu lhes darei em propriedade” (Deut. 5, 28). Marcos recorda: “Ide pelo mundo inteiro, proclamai a Boa Nova a toda a criatura” (Mc., 16,15). E os Actos dos Apóstolos afirmam sobre Paulo: “Dirigia-se também aos helenistas e discutia com eles” (Act., 9,29). Quer o cristianismo quer o Islão assentam a sua fé, progressivamente, já não no mero cumprimento da Lei, mas na adopção de um credo. E o universo ritual e teológico exige uma gestão do conhecimento, que assume uma importância nova e fundamental. Deste modo, deixa de haver uma matriz étnica, para haver como referência o próprio Universo, abarcando todos os povos. Lançam, pois, os três monoteísmos, a partir da lei estabelecida por Deus e pela exigência da universalidade, o que será o desenvolvimento da ciência.
DOMAR O DESTINO
Os deuses do Olimpo não eram omniscientes. Zeus e Hera discutiam o futuro de Aquiles. Zeus não escondia a admiração que tinha por Heitor (“Ah! Eu tenho estima pelo homem quando vejo perseguir à roda do muro”…). No entanto, eram as Moiras que presidiam, segundo a visão grega, ao destino, previamente marcado, de todos os indivíduos. As três irmãs, Átropo, Cloto e Láquesis, seguiam a vida das pessoas, do nascimento até à morte, fiando, enrolando ou cortando o fio do tempo. Elas faziam parte, todavia, de uma ordem que escapava aos deuses cimeiros do panteão. Eram reminiscência de uma ordem antiga, que encontramos nos sumérios, para quem os deuses inscreveriam nos astros as suas acções e os seus desígnios, abrindo campo aos que tinham o dom de ler esses indicadores. Apolo comunicava com os humanos no oráculo de Delfos a quem o interrogasse através de Pitoniza. Essas divindades, detentoras do poder directo sobre o tempo, correspondiam a potências não domadas pelos humanos, numa fase arcaica, que vai sendo superada, primeiro no panteão grego e depois nos monoteísmos.
O PODER DA IDENTIDADE
Com a atribuição de um nome e com o reconhecimento de uma identidade, entra-se no mundo das essências e das entidades passíveis de cognição. No oráculo de Delfos já se dizia: “Conhece-te a ti mesmo”. Anunciava-se a atitude socrática: não a construção de si, mas a descoberta do que já existe em cada um – o despertar. “O conhecimento como que existe antes e paralelo ao processo individual de o obter”. E aqui encontramos a afirmação da omnisciência divina que se projecta na humanidade. No acto criador relatado no Génesis, é Adão quem designa os animais que o rodeiam. No caso do Alcorão, Alá revela os nomes a Adão, mas não é este que os designa («Deus ensinou a Adão os nomes de todas as coisas; depois apresentou-as aos anjos e disse-lhes: ‘Nomeai-as se sois sinceros’»). Adão é neste caso um intermediário do Deus único e omnisciente. Mas além da identidade, importa entender o tempo. Na “Eneida”, Eneias dialoga com Anquises, misturando passado e futuro na sua visita ao Averno. O mundo dos mortos confunde-se com o mundo dos não vivos. Trata-se de tomar consciência das dimensões visíveis e não visíveis – e é assim que a ciência se constrói dentro do paradigma de “chegar a um conhecimento divino, mediante uma busca que é também interior, ética, de aperfeiçoamento indispensável do indivíduo”. E chegamos ao exemplo de Pitágoras e do seu teorema sobre um triângulo rectângulo (o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos). Se formos fazer as operações aritméticas teremos dificuldade em chegar ao valor da hipotenusa. Mas se recorrermos à geometria e desenharmos os quadrados respectivos, da hipotenusa e dos catetos, já não temos dificuldade em entender o resultado. E essas formas compreensíveis correspondem à esfera do divino.
O ENIGMA TAUTOLÓGICO
Moisés procurou desvendar o mistério maior – o do nome de Deus. Qual o Seu verdadeiro nome? O nome é um modo de relação e uma forma de conhecimento da divindade. E a interdição da representação de Deus é uma variante a impossibilidade de nomeação. YHWH é de difícil leitura propositadamente. Qual a resposta? “Eu sou Aquele que sou”. Tautologicamente, essa é a revelação do enigma. E assim se abre caminho à ponte, artificiosamente construída, entre Jerusalém e Atenas. Salomão torna-se símbolo da “sophia” (sabedoria). A sabedoria provém de Deus e é controlada por Este. Implica a rectidão de quem a detém. Por ela se acede aos princípios do universo. Pela sabedoria se chega aos conhecimentos da natureza, do espírito e dos instintos. A sabedoria possibilita “correr” no tempo e conhecer o que está oculto. A noção de lei é corolário da evolução monoteísta. E as leis de Deus e da ciência têm em comum a sua universalidade. Ambas têm o mesmo berço: a ideia omnisciente de Deus E esta omnisciência obriga à emancipação da humanidade.
E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença
Guilherme d’Oliveira Martins