QUARENTA ANOS…
O programa das celebrações dos quarenta anos de vida literária de António Lobo Antunes na Fundação Calouste Gulbenkian, em colaboração com o grupo Leya, permitiu aprofundar o conhecimento da obra de um grande escritor e refletir sobre a riqueza da produção literária e artística de um autor, recentemente recebido na Biblioteca Pléiade, célebre coleção francesa que reúne os maiores autores da humanidade, só excecionalmente reservada aos vivos. Desde o momento em que, no ano de 1979, foram publicados os dois primeiros romances, Memória de Elefante e Os Cus de Judas assistimos a um percurso consistente, no qual o que importa é a história de gente de carne e osso que encontramos na vida a cada passo. E recordamos o momento em que nos foi dado ler pela primeira vez o novo autor: “O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar, de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquela Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante: A quotazinha da sociedade, senhor doutor”… De que nos fala António Lobo Antunes? De nós e dos outros. E nesse ano de 1979 era Portugal que evoluía, que se adaptava às novas circunstâncias. E era isso que interessava ao escritor, não numa perspetiva global ou metafísica, mas a partir dos fragmentos da vida protagonizados por pessoas concretas, inesperadas, diferentes, capazes de nos acompanhar nos caminhos e nos momentos mais difíceis e intrincados. Não faço aqui um enquadramento geral, mas recordo o trabalho editorial incessante de Maria da Piedade Ferreira na construção do diálogo pertinente de um escritor difícil, mas necessário, com os seus leitores. E neste encontro multifacetado e polifónico, importa a agradecer ao autor por tudo o que nos tem dado e por certo continuará a dar – em memória, criatividade, talento e extraordinário domínio da palavra e da narrativa. E é devido ainda um agradecimento a todos quantos têm contribuído para a análise e melhor compreensão de uma obra rica de cerca de meia centena de livros, recebidos sempre com uma significativa e justa expectativa. Com ironia, António Lobo Antunes diz que não devia fazer eletrocardiogramas, mas sim escalas de Richter porque (diz-nos) “me parece que em lugar de coração tenho um sismógrafo cuja agulha assinala o menor estremeço interior ou exterior com uma amplitude imensa: basta-me viver para a agulha não parar, e que cordilheiras de tinta os meus dias…”.
O CORAÇÃO DO CORAÇÃO…
O colóquio internacional fez-se sob a invocação: “Apenas me preocupa atingir o coração do coração e iluminar tudo”. É este o desafio perante o qual nos temos de haver. É o encontro dos outros com que a cada passo nos deparamos. E lembro dois grandes amigos de António, Ernesto Melo Antunes de José Cardoso Pires, que em memória e espírito nos acompanharam, demonstrando como as razões do coração, que encontramos ao longo desta obra, constituem uma matéria-prima inesgotável. E o certo é que se aplica a ela o que o escritor disse sobre Eduardo Lourenço. “sob a inevitável complexidade artesanal da sua arquitetura, tudo atravessado por um humor subterrâneo, uma discreta ironia sulfúrica e uma espécie de inocência sábia, (…) de criança antiga, dona de um dedinho certeiro”. Sim, António também se preocupa com “uma máquina de entender o mundo, através do homem, infinitamente simples”. O coração do coração e o antecipar dos olhos nos olhos, e o tentar começar a ver distintamente estão presentes. E essa consciência das diferenças, da multiplicidade, das tensões, dos dramas, dos encontros e desencontros está no cerne da marca deste grande escritor – e é por isso que com António Lobo Antunes podemos compreender melhor quem somos no caminho de um lento entendimento. “O que seria de mim (diz o escritor) se não escrevesse, povoado pelos meus cães negros? Agora, e até começar o livro, não cessam de rondar-me: sinto-lhes a respiração, o cheiro, a baba. Sinto-os roçarem-me. Vejo-lhes as órbitas amarelas, os dentes…”. Mas eis que é a vida que irrompe. E ficam os livros: “em certo sentido, é terrível que a criação dure mais que o criador: Flaubert enfurecia-se que a Bovary continuasse viva e ele não. É curioso: agora é ela, a quem Flaubert deu vida, que lhe dá a vida a ele. É essa a grandeza da Arte: o Verbo torna-se Carne, que por sua vez torna a ser Verbo. Pode desejar-se atividade mais nobre?” O mundo e a vida não param. Os grandes romances, como a grande poesia, exigem que se releiam no maravilhamento da descoberta – “a todo o passo damos com pormenores que nos haviam passado despercebidos, em cada página nos emocionamos”. E isto vale para o leitor e para o escritor, já que a descoberta é necessariamente biunívoca. Há uma troca permanente entre a escrita e a leitura. Tudo é excecional. Se falamos de ler, falamos de reescrever, de refletir, de pensar. É da vida que se trata. Por isso, a leitura é o melhor modo de realizar a liberdade. E que marca extraordinária essa na coerência do escritor. Em cada linha António no-lo diz com persistência. Não se trata de fechamento, mas de partilhar uma experiência própria e intransmissível.
A ORIGINALIDADE DO ESCRITOR
Bernard-Henri Lévy leu com especial cuidado a obra de António Lobo Antunes e encontrou nela a reinvenção do tempo, o diálogo interior e a polifonia (capaz de não esquecer cada som e cada interpretação), como pontos essenciais da originalidade do escritor. O tempo, o mundo e o mal; a consideração da guerra como bomba atómica moral; mas também o domínio da escrita e da comunicação: a música, a pontuação e a perceção da doença – eis os elementos que colocam o escritor na galáxia dos maiores, dos inovadores, daqueles que revelam capacidade de ir ao encontro da voz do leitor… Ah! E temos a presença sub-reptícia, permanente, dessa estranha aventura que aprendemos a ler em “Peregrinação” e nas mil peripécias e personagens em que Fernão Mendes foi protagonista plural – “e com muita Avé-Maria e muito pelouro nos fomos a eles e em menos de um Credo os matámos a todos”… Que é a escrita senão essa capacidade de exprimir de forma inusitada o inesperado devir, permitindo ver melhor a realidade, como na subversão do tempo em “As Naus” (1988)? Sim, somos nós e os outros que António Lobo Antunes traz em observação cuidadosa, atenta e complexa. Regressado da guerra, sabia de feridos, de tiros e explosões, de minas, de prisioneiros, de crianças mortas, mas ainda tinha sido poupado ao conhecimento do inferno. E assim pôde entender o género humano, a coragem e a tibieza, o fundo bom e as baixezas… No fundo, acredita nas pessoas, por ter tido a possibilidade de conhecer o inominável… Aqui tudo começa e tudo continua. E, afinal, António, “basta um sorriso para ressuscitar o universo”…
Guilherme d’Oliveira Martins
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