A Vida dos Livros

“A Outra Margem do Mar” de António Lobo Antunes

Acaba de ser publicado o romance “A Outra Margem do Mar” de António Lobo Antunes (D. Quixote, 2019) que nos fala de um incidente ocorrido em Angola antes da guerra colonial, quando grandes plantações de algodão começaram a ser incendiadas, prenunciando a que viria a acontecer depois…

QUARENTA ANOS…
O programa das celebrações dos quarenta anos de vida literária de António Lobo Antunes na Fundação Calouste Gulbenkian, em colaboração com o grupo Leya, permitiu aprofundar o conhecimento da obra de um grande escritor e refletir sobre a riqueza da produção literária e artística de um autor, recentemente recebido na Biblioteca Pléiade, célebre coleção francesa que reúne os maiores autores da humanidade, só excecionalmente reservada aos vivos. Desde o momento em que, no ano de 1979, foram publicados os dois primeiros romances, Memória de Elefante Os Cus de Judas assistimos a um percurso consistente, no qual o que importa é a história de gente de carne e osso que encontramos na vida a cada passo. E recordamos o momento em que nos foi dado ler pela primeira vez o novo autor: “O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar, de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquela Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante: A quotazinha da sociedade, senhor doutor”… De que nos fala António Lobo Antunes? De nós e dos outros. E nesse ano de 1979 era Portugal que evoluía, que se adaptava às novas circunstâncias. E era isso que interessava ao escritor, não numa perspetiva global ou metafísica, mas a partir dos fragmentos da vida protagonizados por pessoas concretas, inesperadas, diferentes, capazes de nos acompanhar nos caminhos e nos momentos mais difíceis e intrincados. Não faço aqui um enquadramento geral, mas recordo o trabalho editorial incessante de Maria da Piedade Ferreira na construção do diálogo pertinente de um escritor difícil, mas necessário, com os seus leitores. E neste encontro multifacetado e polifónico, importa a agradecer ao autor por tudo o que nos tem dado e por certo continuará a dar – em memória, criatividade, talento e extraordinário domínio da palavra e da narrativa. E é devido ainda um agradecimento a todos quantos têm contribuído para a análise e melhor compreensão de uma obra rica de cerca de meia centena de livros, recebidos sempre com uma significativa e justa expectativa. Com ironia, António Lobo Antunes diz que não devia fazer eletrocardiogramas, mas sim escalas de Richter porque (diz-nos) “me parece que em lugar de coração tenho um sismógrafo cuja agulha assinala o menor estremeço interior ou exterior com uma amplitude imensa: basta-me viver para a agulha não parar, e que cordilheiras de tinta os meus dias…”.

O CORAÇÃO DO CORAÇÃO…
O colóquio internacional fez-se sob a invocação: “Apenas me preocupa atingir o coração do coração e iluminar tudo”. É este o desafio perante o qual nos temos de haver. É o encontro dos outros com que a cada passo nos deparamos. E lembro dois grandes amigos de António, Ernesto Melo Antunes de José Cardoso Pires, que em memória e espírito nos acompanharam, demonstrando como as razões do coração, que encontramos ao longo desta obra, constituem uma matéria-prima inesgotável. E o certo é que se aplica a ela o que o escritor disse sobre Eduardo Lourenço. “sob a inevitável complexidade artesanal da sua arquitetura, tudo atravessado por um humor subterrâneo, uma discreta ironia sulfúrica e uma espécie de inocência sábia, (…) de criança antiga, dona de um dedinho certeiro”. Sim, António também se preocupa com “uma máquina de entender o mundo, através do homem, infinitamente simples”. O coração do coração e o antecipar dos olhos nos olhos, e o tentar começar a ver distintamente estão presentes. E essa consciência das diferenças, da multiplicidade, das tensões, dos dramas, dos encontros e desencontros está no cerne da marca deste grande escritor – e é por isso que com António Lobo Antunes podemos compreender melhor quem somos no caminho de um lento entendimento. “O que seria de mim (diz o escritor) se não escrevesse, povoado pelos meus cães negros? Agora, e até começar o livro, não cessam de rondar-me: sinto-lhes a respiração, o cheiro, a baba. Sinto-os roçarem-me. Vejo-lhes as órbitas amarelas, os dentes…”. Mas eis que é a vida que irrompe. E ficam os livros: “em certo sentido, é terrível que a criação dure mais que o criador: Flaubert enfurecia-se que a Bovary continuasse viva e ele não. É curioso: agora é ela, a quem Flaubert deu vida, que lhe dá a vida a ele. É essa a grandeza da Arte: o Verbo torna-se Carne, que por sua vez torna a ser Verbo. Pode desejar-se atividade mais nobre?” O mundo e a vida não param. Os grandes romances, como a grande poesia, exigem que se releiam no maravilhamento da descoberta – “a todo o passo damos com pormenores que nos haviam passado despercebidos, em cada página nos emocionamos”. E isto vale para o leitor e para o escritor, já que a descoberta é necessariamente biunívoca. Há uma troca permanente entre a escrita e a leitura. Tudo é excecional. Se falamos de ler, falamos de reescrever, de refletir, de pensar. É da vida que se trata. Por isso, a leitura é o melhor modo de realizar a liberdade. E que marca extraordinária essa na coerência do escritor. Em cada linha António no-lo diz com persistência. Não se trata de fechamento, mas de partilhar uma experiência própria e intransmissível.

A ORIGINALIDADE DO ESCRITOR
Bernard-Henri Lévy leu com especial cuidado a obra de António Lobo Antunes e encontrou nela a reinvenção do tempo, o diálogo interior e a polifonia (capaz de não esquecer cada som e cada interpretação), como pontos essenciais da originalidade do escritor. O tempo, o mundo e o mal; a consideração da guerra como bomba atómica moral; mas também o domínio da escrita e da comunicação: a música, a pontuação e a perceção da doença – eis os elementos que colocam o escritor na galáxia dos maiores, dos inovadores, daqueles que revelam capacidade de ir ao encontro da voz do leitor… Ah! E temos a presença sub-reptícia, permanente, dessa estranha aventura que aprendemos a ler em “Peregrinação” e nas mil peripécias e personagens em que Fernão Mendes foi protagonista plural – “e com muita Avé-Maria e muito pelouro nos fomos a eles e em menos de um Credo os matámos a todos”… Que é a escrita senão essa capacidade de exprimir de forma inusitada o inesperado devir, permitindo ver melhor a realidade, como na subversão do tempo em “As Naus” (1988)? Sim, somos nós e os outros que António Lobo Antunes traz em observação cuidadosa, atenta e complexa. Regressado da guerra, sabia de feridos, de tiros e explosões, de minas, de prisioneiros, de crianças mortas, mas ainda tinha sido poupado ao conhecimento do inferno. E assim pôde entender o género humano, a coragem e a tibieza, o fundo bom e as baixezas… No fundo, acredita nas pessoas, por ter tido a possibilidade de conhecer o inominável… Aqui tudo começa e tudo continua. E, afinal, António, “basta um sorriso para ressuscitar o universo”…  

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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