A VIDA DOS LIVROS
De 26 de Novembro a 2 de Dezembro de 2007
“Eça de Queiroz – Fotobiografia” de A. Campos Matos (Caminho, 2007) é um repositório completo, competente, com grande qualidade gráfica, que constitui um exemplo a seguir no género, num momento em que a proliferação de fotobiografias se deve por vezes mais a objectivos comerciais do que a preocupações de rigor científico. A. Campos Matos tem dado o exemplo, sendo pioneiro na ligação entre o cuidado da imagem, o estudo e a reflexão sobre um dos seus temas dilectos – a vida e a obra de José Maria Eça de Queiroz.
UM PERCURSO FUNDAMENTAL – O percurso de José Maria Eça de Queiroz permite-nos entender a obra e o homem, a sua época e a sua originalidade. O romancista não se confunde, por isso, com a sua época, é um observador privilegiado que, ao olhar a sociedade de fora sem nunca ter perdido o contacto com ela, pode exercer o seu sentido crítico com apurada pertinência. Leia-se “Os Maias”. São um quadro insuperável, ao nível das melhores sagas da literatura europeia. É o Portugal Contemporâneo que ali está de corpo inteiro, desde os últimos sinais do “Antigo Regime” até às diferentes manifestações da revolução liberal, da Regeneração e da deliquescência do rotativismo monárquico. Trata-se de um quadro longamente pensado em que o autor procura em cada página, em cada linha usar da melhor maneira os traços e as cores para dizer como era a sociedade portuguesa, a mesma retratada no “Concerto de Amadores” de Columbano, entre o naturalismo e o impressionismo, a caminho do simbolismo. Num país com uma justa tradição de “estrangeirados”, José Maria não o foi. Partiu, sim, de uma observação por vezes exterior que, no entanto, nunca se divorcia das raízes e de um sentido crítico muito oportuno e certeiro, em que não nos podemos deixar enganar por ilusórias simplificações dos tipos retratados, que visam sempre mais longe e largo do que à primeira vista poderá parecer. Daí muitas vezes dizer-se que a sociedade é a mesma e que as personagens queirozianas podem irromper a qualquer momento no nosso convívio. O problema é muito mais complexo do que isso. A sociedade mudou, indiscutivelmente, mas há atitudes e tiques em que nos continuamos a reconhecer, e nessa análise Eça foi insuperável. “Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês – excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada. Em tudo mais, francês, de província”. Eça confessa-se, mas simplifica. Se “Os Maias” fosse um romance francês seria suportável nos dias de hoje; e no entanto não foi isso que aconteceu. O sério e o irónico encontram-se, como no fundo português, o drama e a comédia, o lírico e o trágico. “Que finíssima comédia há em todos os seus livros! As caricaturas que fazia valem artisticamente os retratos de tamanho natural que nos deixou” – disse António Cândido. Eis a manifestação do “melting pot” que somos. Jaime Batalha Reis, sempre lúcido na apreciação das tendências de largo prazo viu muito bem: “ele é essencialmente único, absolutamente único – na literatura do seu país”. E continua a ser. E a obra ensina-nos a compreender bem essa singularidade – nascimento e infância, adolescência, Universidade, aprendizagem e viagem ao Oriente, Cuba, Newcastle, Bristol, Paris, a dissimulação, o dinheiro, a política, a geografia, a mesa, as viagens. E, além do mais, no dizer de Eduardo Lourenço: “o mais preciso, minucioso, criativo inventário da vivência erótica, não apenas na língua portuguesa, mas porventura na literatura universal”. É bom seguir esse percurso fascinante.
A “GERAÇÃO DE SETENTA” – O percurso de José Maria permite-nos começar a compreender a geração de que fez parte e que continua a ser tão mal e incompletamente entendida. Só se explica, aliás, a fantástica influência desse grupo pelo facto de ele ter-se assumido na encruzilhada de influências que vem do Portugal histórico e romântico (dos mestres Garrett e Herculano) e vai até ao abrir de novos horizontes para a modernidade do século XX. Daí a dificuldade de se encontrar uma chave explicativa e a tentação de escolher apenas fragmentos redutores da obra ou do magistério dos homens de setenta, que não podem deixar de ser vistos na totalidade, na complexidade, que o mesmo é dizer, nas suas contradições e paradoxos. Veja-se a personalidade irradiante de Antero de Quental. Quem poderá simplificar a sua influência, sem incorrer no crime de contrafacção grave? Do mesmo modo, não se pense que o pessimismo niilista é marca do grupo. Se fossem chamados ao tribunal da história, teríamos grandes surpresas nas suas respostas – e não falo já dos tão discutidos “últimos tempos”, refiro-me aos documentos e opiniões coevos do início e da maturidade, que depois vão ser completados no virar para o século XX. Conformismo, nunca; fatalismo do atraso foi sempre um inimigo jurado, desde Coimbra; optimismo lírico, também não, basta ler exactamente as últimas páginas. Sentido crítico, sempre, porque entendiam que as civilizações só se afirmam e sobrevivem se alimentarem no seu seio a capacidade renovadora da criatividade incómoda. E a distância? É um dos grandes mistérios da geração. A distância entre Portugal e a Europa culta e desenvolvida é uma preocupação desde os primeiros passos. “Portugal é um país ignorante, mergulhado no obscurantismo da alma, e apenas guiado pelas perfeições do instinto”. Como pôr o coração de Portugal a bater ao ritmo da Europa? Eis o ponto fundamental. E daí a importância dos ideais e da instrução, da crítica e da ciência. E quanto ao suposto vencidismo, o desmentido é conhecido e óbvio: “Para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou – mas do ideal íntimo a que aspirava”.
O RETRATO DE PORTUGAL – “Cá estamos ainda, depois de três séculos, com a nossa constituiçãozinha, o nosso reizinho, e o nosso Zézinho (Dias). Cá estamos, na mesma choldra sim, mas numa choldra que é portuguesa, só nossa, toda nossa”. Seguindo o método da geração, o romancista não confunde planos. Entende que não pode haver a tentação de facilitar na crítica: “o dever do artista é estudá-los (aos produtos sociais) como o botânico estuda as plantas, sem se importar que seja a beladona ou a batata”. E o jovem José Maria, seguindo o que se dizia no cenáculo, por essa altura, entre Proudhon e Hartmann: “as revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade” (era no “Distrito de Évora”, em 1867). No fundo, para sermos fiéis à memória dessa Geração, tão próxima e tão distante, temos de analisar os seus membros na sua diversidade e na sua complexidade, sem cedências fáceis ou mimetismos despropositados. E se digo, tão próximos e tão distantes, é porque lendo-os compreendemos o que dizem, na aparência atraente e vistosa das palavras, mas o certo é que muitas vezes não cuidamos, nós próprios, do sentido crítico que nos ensinaram, e deixamos na penumbra aquilo que, de facto, nos quiseram dizer. Assim sendo, leiam-se os mestres dessa geração única, que marcou e marca a nossa vida intelectual, moral e cívica, à luz da coerência que cultivaram, mesmo nas aparentes mudanças. Há o levantar permanente da questão social, há o suscitar de um sobressalto de que Portugal precisa sempre, há a visão do horizonte europeu, como sinal de independência de espírito, de liberdade, de evolução e de justiça. Ao vermos estas imagens reunidas sábia e diligentemente por A. Campos Matos, fica-nos uma familiaridade muito especial com o inolvidável José Maria e com os seus amigos. E a responsabilidade de os ouvir aumenta!
E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença
Guilherme d’Oliveira Martins