UM LIVRO POR SEMANA
De 1 a 7 de Outubro de 2007
“Ética” da autoria de Dietrich Bonhoeffer (Assírio e Alvim, 2007) faz parte da colecção “Teofanias” dirigida por José Tolentino Mendonça. Em boa hora a editora teve a coragem de lançar para o público português uma lista de textos tão ricos e pertinentes de Cristina Campo, Soeren Kierkegaard, Simone Weil ou do Cardeal Newman. O conjunto agora dado à estampa é de um dos mais importantes teólogos alemães do século XX e constitui uma oportunidade de excepção para nos interrogarmos sobre o fenómeno religioso numa perspectiva aberta e através de um grande rigor intelectual. Se à primeira vista, o livro é difícil e muito denso, o certo é que, à medida que entramos nele, encontramos uma reflexão profundamente atraente e estimulante. O tradutor, Artur Mourão, com grande cuidado e escrúpulo, alerta-nos para a natureza muito especial deste livro, composto por textos escritos sob a pressão dos acontecimentos e animados por uma resistência indómita, que o autor sabia conduzir a um final trágico, como de facto aconteceu. E é essa natureza especial que leva à necessidade de explicar o porquê de determinadas opções na apresentação da obra, quando os textos estão incompletos ou quando são feitas alusões crípticas, pelo facto de o teólogo escrever na clandestinidade e perante o risco (que se tornou certeza) de vir a ser preso e condenado pelas ideias que defendia. E o que mais nos impressiona, como diz o tradutor, é «a unidade profunda da vida e do pensamento” que distingue o escritor “da maior parte das figuras públicas da sua época e da nossa a simbiose perfeita entre a reflexão e a existência, a atenção à irradiação e à encarnação necessárias da fé cristã nas estruturas concretas da comunidade humana histórica, que ser Igreja não consiste em pertencer a uma associação piedosa, mas em prestar ‘testemunho perante o mundo’». Bonhoeffer não se limita a ver a relação com Deus como meramente religiosa, mas vai mais além e põe as coisas em termos de uma vida nova, em que a pedra de toque é o “ser-para-os-outros”, enquanto “comunhão na vida de Jesus”. Em suma, o teólogo procura uma posição de equilíbrio que parta da ideia de que a Igreja não tem o direito de se apropriar de um poder estatal, mas que recuse o ensimesmamento e o isolamento da política, sobretudo quando o Estado “lesa e elimina os direitos humanos fundamentais”. É a mesma coerência entre pensamento e vida que encontramos em Paul-Ludwig Landsberg (amigo de Mounier) ou em Edith Stein, crucial na leitura deste livro. Pode dizer-se, assim, que nada é compreensível nesta “Ética” se não a partir de um testemunho em que o “ser-para-os-outros” se liga a uma vivência efectiva de liberdade e responsabilidade. Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) nasceu em Breslau de uma família conceituada da Igreja reformada luterana e viveu em Berlim desde os seis anos. Estudou Teologia em Tubinga e em Berlim, obtendo o doutoramento com vinte e um anos com a tese sobre “A Comunhão dos Santos”, sob a orientação de Reinhold Seeberg. Apesar de não ter estudado com Karl Barth foi profundamente marcado pela obra deste. Em 1928 desempenha a função de pastor na comunidade evangélica alemã de Barcelona. Em 1930 escreve “Acto e Ser” e parte para Nova Iorque, onde trabalha como Sloan Fellow no Seminária da União Teológica. Aí fala de um único povo de Jesus Cristo que pode viver em todo o mundo em comunhão ecuménica e fraterna em busca da paz. No ano seguinte, é Professor de Teologia na Universidade de Berlim, sendo ordenado ministro da Igreja reformada luterana. Em 1933, apenas dois dias depois da nomeação de Hitler, vê interrompida uma emissão radiofónica em que fala dos perigos dos totalitarismos. Pouco depois, com o pastor Martin Niemoeller, dirige-se aos ministros luteranos alemães sobre os perigos morais de uma solução política fechada. Demarcando-se daqueles que se deixaram envolver no projecto de Hitler, ajuda a organizar a Igreja Confessante, que reúne um terço do clero luterano, e ensina no seminário de Finkenwalde (1934-35), mas em 1936 é proibido de ensinar em Berlim. A Gestapo encerra o seminário de Finkenwalde, onde Bonhoeffer reflectira sobre a “questão judaica” e sobre o sentido de Israel para a fé cristã. Publica “O Preço da Graça: o seguimento” (1937), entra em contacto com os movimentos de resistência e participa na redacção de “Vida em Comunidade”. Em 1939, visita a Inglaterra e os Estados Unidos, mas nega-se a ficar no exílio. “Não terei direito de participar na reconstrução da vida cristã na Alemanha depois da guerra se não viver com o meu povo as provações do tempo presente”. Acusa ainda os silêncios dos crentes, culpados “das mortes dos irmãos mais fracos e indefesos de Jesus Cristo”. Começa então (1940) a escrever “Ética”, passando algum tempo numa abadia beneditina perto de Munique. Em 1942 volta ao estrangeiro (Inglaterra, Noruega, Suécia e Suiça). Compromete-se formalmente com Maria von Wedemayer, mas é preso. Depois de passar pelas cadeias berlinenses de Tegel e da Gestapo, é transferido para o campo de concentração de Buchenwald e sucessivamente para os de Regensburg, Schönberg e Flossenburg, onde será condenado à morte e executado a 9 de Abril de 1945, um mês antes da queda de Hitler. A “Ética” é um itinerário espiritual, onde se afirma a dado passo: “enquanto o ‘ético’ estabelece apenas os limites, define só o formal, o negativo e é, portanto, possível como tema só e sempre no limite, de modo formal e negativo, o mandamento de Deus ocupa-se do conteúdo positivo e da liberdade do homem de aprovar este conteúdo positivo. O mandamento de Deus como tema de uma ética cristã só é, pois, possível, se tiver ao mesmo tempo em vista o conteúdo positivo e a liberdade do homem” (p. 340). A ética cristã constitui, assim, um permanente desafio, centrado em Jesus Cristo e no amor reconciliador de Deus, na autoridade, na família, na cultura e na Igreja… E Bonhoeffer é incansável no cuidar dessa viagem incerta…
Guilherme d’Oliveira Martins