A Vida dos Livros

Um livro por Semana

“O Essencial sobre Fernando Gil”, de Paulo Tunhas (INCM, 2007) constitui uma invocação rigorosa e justa sobre uma personalidade multifacetada e singularíssima de um grande filósofo português contemporâneo de projecção internacional. Aliás, a colecção “Essencial”, iniciada na Imprensa Nacional por Vasco Graça Moura, é um repositório que tem de ser visitado. Numa opção muito pertinente, o autor desta pequena obra optou por citar abundantemente o filósofo e isso constitui uma das principais mais valias deste texto fundamental.

UM LIVRO POR SEMANA
De 24 a 30 de Setembro de 2007



“O Essencial sobre Fernando Gil”, de Paulo Tunhas (INCM, 2007) constitui uma invocação rigorosa e justa sobre uma personalidade multifacetada e singularíssima de um grande filósofo português contemporâneo de projecção internacional. Aliás, a colecção “Essencial”, iniciada na Imprensa Nacional por Vasco Graça Moura, é um repositório que tem de ser visitado. Numa opção muito pertinente, o autor desta pequena obra optou por citar abundantemente o filósofo e isso constitui uma das principais mais valias deste texto fundamental. O autor começa por recordar uma afirmação iluminante relativamente ao percurso intelectual de Fernando Gil: “A existência prende-se com o individual, isto constitui à partida um facto de experiência: a concreção do indivíduo exprime-se por um poder de fascinação por onde passa a função de apresentação: eis o segredo da operação da evidência” (Acentos, p. 14). A singularidade molda a identidade e a evidência, que se encontram antes do saber e da prova. E foi essa ligação que preocupou, desde sempre, o filósofo. E se é certo que Fernando Gil disse um dia ter descoberto tarde os seus problemas, a verdade é que, como salienta Paulo Tunhas, desde cedo encontramos as mesmas preocupações fundamentais do pensador. Desde La Logique du Nom (1972) que o tema da singularidade se encontra presente na permanente interrogação sobre o mundo e a vida. Oiçamos Fernando Gil sobre uma consideração fundamental a respeito da singularidade: “a crença e a convicção são a parte maldita da inteligibilidade que a epistemologia tradicional recusa”. E Paulo Tunhas esclarece: “Do mesmo modo que há uma assimetria entre o verdadeiro e o falso, há uma assimetria entre a convicção e a crença (a primeira compreende a segunda, mas a segunda não compreende a primeira). A fundação estabelece-se por construção, e é a construção que permite a passagem da crença à convicção e garante a possibilidade da inteligibilidade e da compreensão. O fundamento, procurando ocultar a fundação, isto é, concebendo-se como ideologia, não consegue encobrir perfeitamente os actos de construção que lhe estão na origem, ou o que faz a vez destes, isto é, a vontade” (p. 15). E, sendo assim, o que conduz à operação da evidência? A ligação entre a experiência e a evidência como se faz? Como poderemos entender que, na fórmula de Husserl, “a experiência dá o existente”? Quais os algoritmos susceptíveis de produzir a evidência? Fernando Gil fala da “alucinação” como operador da evidência – e essa alucinação “transformará um dado sensorial e linguístico em inteligibilidade, e a inteligibilidade em satisfação do espírito” (Tratado da Evidência, p. 220). Perante a ausência de um objecto de desejo, o sujeito toma consciência da alucinação; e a expectativa e o preenchimento encontram-se (em “Os Lusíadas” ou na análise das profecias do Padre António Vieira)… Estamos no coração da Filosofia do Conhecimento, a paixão da vida do filósofo. Ao lermos uma obra luminosa como Mimésis e Negação, encontramos permanentemente a tensão entre a teoria e as condições da sua aplicabilidade. O filósofo falava de realismo interno – que pressupunha a compreensão da teoria da prova em Direito, sempre alcançada no confronto entre o testemunho ou prova empírica e argumentação ou prova racional. Verdade e justiça encontram-se na encruzilhada e na oposição entre o realismo de adequação e o idealismo de interpretação. Assim, “o verdadeiro problema não é a prova, mas a compreensão” (p. 98) – e é isto que obriga a um caminho de aproximação à verdade, mesmo sabendo-se que não a atingiremos plenamente, a não ser por aproximações sucessivas. E este movimento conduz-se à representação – “perceber é já representar” (MN, p. 81) – e à negação. O contraste, a oposição, a controvérsia fazem parte do mundo da vida e do acto de conhecer. E assim a representação e a controvérsia coexistem e são animadas pela tendência do pensamento para a verdade. Daí que, como método, Fernando Gil ligue intensamente a representação e a negação como factores de aproximação e de adequação, teorizando sobre o primado da percepção sobre a representação, colocando-se no seio da “aporia da representação”, no intervalo entre o “realismo passivo da semelhança” e o “idealismo activo da interpretação”, o que conduz ao realismo da interpretação – que conjuga a construção e a adequação ao que é dado. Essa é a sua permanente inquietação no sentido de encontrar equilíbrio entre conhecimento e compreensão. Lembremo-nos do que, ainda em Mimésis e Negação, nos diz sobre a invenção: “Há no processo de invenção dois movimentos inversos. Um virado para a frente, que descobre as soluções novas. O outro aspira ao repouso, à redução das tensões, à homeostase: a invenção aplica-se a problemas que se querem resolver, pertence à natureza da criação encontrar um termo”. Por outro lado, quanto à descoberta salientava a importância do acaso e da contingência, detectando aí um jogo entre o acaso e o espaço do problema e da obra. Não se pense, porém, que tudo isto constituía um mundo à parte na vida de Fernando Gil. Não. Para o filósofo, isto estava no cerne das suas preocupações quotidianas, das inquietações permanentes. Leia-se, por exemplo, Viagens do Olhar (“Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português”, com Hélder Macedo), aí encontramos, a cada passo, na literatura, na arte e na vida a projecção das preocupações fundamentais do filósofo – “fundação e viagem não se opõem apenas: iluminam-se, explicam-se, reforçam-se, uma pela outra” (p. 19). E a viagem surge como a “boa evidência”, expondo “ao desconhecido, à diferença (em vez da identidade) e à incerteza. Ela desenrola-se segundo a modalidade do possível e do contingente (em vez da necessidade). A história cumpre-se, a viagem abre” (p. 18). “Melhor é experimentá-lo do que julgá-lo”…  
                                                     Guilherme d’Oliveira Martins

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