UM LIVRO POR SEMANA
de 3 a 9 de Setembro de 2007
O tempo de férias permite-nos ir ao baú e desencantar velhas edições que mantêm a frescura e a força da novidade. Está neste caso “A Vida Quotidiana no Tempo de Homero” de Émile Mireaux, traduzido por Sophia de Mello Breyner Andresen (Livros do Brasil, s.d.). A primeira edição é de 1957, correspondendo ao número 3 da série “Vida Quotidiana”, traduzida da colecção da Hachette, editora que publicou originalmente este mesmo volume em 1954.
Se esta obra vale por si, e tem uma importância pedagógica indiscutível, o certo é que a tradução tem um significado acrescido, não apenas por quem a assina, mas também pelo facto de o tempo aqui retratado corresponder ao período mítico que tem na poesia de Sophia uma importância primordial. E se Frederico Lourenço tem assinalado que este livro pode constituir uma das chaves para entendermos a visão de Homero de quem a ele tanto recorreu na sua criação literária, não é menos verdade que se nota ter sido a tradutora a ir ao encontro deste livro, por afecto ou por afinidade electiva. Por isso, ao lermos esta “vida quotidiana”, voltamos a ouvir Sophia ao chegar à Grécia mítica, que afinal tem muito de Portugal: “Aqui despi o meu vestido de exílio / E sacudi de meus passos a poeira do desencontro”. Mas afinal quem foi Homero da “Ilíada” e da “Odisseia”, e quando viveu? Heródoto situa-o na primeira metade do século IX a.C., mas a escola analítica alemã refere a segunda metade do século VI, no tempo de Pisístrato, para situar a data de fixação dos textos das obras homéricas. A verdade é que a ira de Aquiles e o retorno de Ulisses eram temas populares divulgados oralmente.
As composições, segundo outros, poderiam ter sido fixadas no século VIII, aquando teria vivido um grande poeta chamado Homero. As hipóteses são várias, e têm a ver com a existência de vários poemas, cantados pela tradição popular, que se foram juntando e cuja origem pode estar nos séculos IX e VIII. Apesar das dúvidas, o ano-eixo fixado pela idade homérica é 700 a.C., um tempo charneira, em que desaparecem as antigas realezas religiosas e patriarcais, e em que as famílias aristocráticas pretendem apoderar-se do poder. A expansão marítima, comercial e colonial do helenismo tem desenvolvimento e, depois, a democracia entra na ordem do dia, exactamente no final da época de Homero. Este é o pano de fundo, que nos permite perceber como se afirmam os fundamentos da nossa própria civilização… Deuses e homens encontram-se, combatem e debatem. E o certo é que “os homens da idade homérica viviam, pelo menos através do pensamento, em intimidade estreita e constante com este mundo divino ou quase divino”.
Sucessivamente, ao longo da obra, visitamos um Solar, partilhamos a vida do Senhor, encontramos as profissões religiosas e intelectuais, sacerdotes, adivinhos, médicos, exorcistas e aedos, mas também deparamo-nos com os camponeses e os soldados, o povo e os trabalhos de campo, os demiurgos e as gentes de ofício. É uma sociedade patriarcal e feudal que encontramos, na linha das tradições mediterrânicas e do mundo egeu, em tudo semelhantes às dos outros povos indo-europeus errantes. “No fundo é a posse da terra que forma as classes, ordena a sua distribuição, rege as suas relações. Comanda mesmo em grande parte a estrutura familiar”. Apesar de tudo, nota-se a evolução e o anúncio de uma nova era. O velho artesanato dos demiurgos (trabalhadores públicos) da forja e da olaria vai passando para segundo plano e aparecem as prepotências da aristocracia e da riqueza, características da transformação social e económica. Uma sociedade tradicionalista, eis o que encontramos inicialmente, a que se segue o sacudir de “um sopro novo”, de “uma febre de rejuvenescimento, que tende para a sua negação e destruição”.
A mensagem fundamental de Homero corresponde, assim, ao impulso da criação, do imprevisto, do heroísmo e da aventura, que sacode a estabilidade representada pelos gestos rituais. O passado poético apela a um futuro de renovação e de criatividade e “exprime as esperanças, os impulsos de um povo jovem ou rejuvenescido que vê abrir-se em frente de si os horizontes da aventura, da riqueza e da expansão”. Numa palavra, é uma sociedade arcaica a ser abalada pela impaciência de uma vida nova. E é isso entusiasma o autor e a tradutora, e esta na sua pele de poeta – em nome da “liberdade da arte, do pensamento e da vida humana”. E há uma violência fundadora que marca o curso dos tempos tragicamente, razão pela qual se torna necessário apelar à justiça, para aplacar a vingança. Os deuses assumem então uma vocação justiceira: que “só começará a nascer com Hesíodo, que casa Zeus com Témis, a Equidade, mãe da Disciplina, da Justiça e da Paz”. Estamos perante uma ideia de justiça essencialmente privada, mas não arbitrária, que exige atenção à humanidade, e uma ligação com os deuses do Olimpo – de que é exemplo a prece da Justiça, filha de Zeus, “aos pés de Zeus, filho de Kronos”, para lhe denunciar “os pensamentos dos homens sem justiça”.
Presenciamos, deste modo, um período charneira em que o arcaísmo cede lugar a transformações sociais, económicas e políticas que aparecerem subtilmente nos relatos de Homero. E se seguirmos os acontecimentos de Tróia e a viagem de Ulisses de regresso a Ítaca descobrimos, a pouco e pouco, que a sociedade marcada pelo capricho dos deuses vai sendo povoada ou temperada pela vontade dos homens e das mulheres. E o certo é que, para Homero as mulheres (Nausicaa, Areté, Penélope, Helena, Andrómaca, Euricleia) têm um lugar muito especial. Delas depende em parte significativa o curso dos acontecimentos… A “Ilíada” e a “Odisseia” aparecem, assim, como poemas fundadores de uma civilização pujante, e apresentam “as primeiras cenas de uma história prodigiosa que será o milagre grego”.
Guilherme d’Oliveira Martins