UM LIVRO POR SEMANA
De 27 de Agosto a 2 de Setembro de 2007
Hoje não falo de um só livro, mas de muitos livros e de um amigo. Eduardo Prado Coelho (1944-2007) saiu de cena inesperadamente, quando muito esperávamos dele. Simbolicamente escolho “Tudo o que não escrevi” (2 volumes, Asa, 1992 e 1994) como obra de referência. É um diário que retrata bem a sua relação com a vida e com a cultura. No sábado de manhã, quando recebi a notícia, atónito perante o inesperado, escrevi de supetão: «A última vez que falámos, e foi há muito pouco tempo, ouvi dele palavras muito positivas de disponibilidade para novos projectos e para voltar à vida plena. Depois das incertezas, estava a vencer bem as dificuldades de saúde. Gostei do seu estado de espírito e a sua voz pareceu-me mais segura. Há dias li o seu texto sobre Fernando Gil e partilhei, mais uma vez, muitas das suas ideias e impressões. Ficámos de voltar a contactar em Setembro para falar de livros e de autores interessantes. E foi ele que teve a iniciativa. Era um dos sócios efectivos do Centro Nacional de Cultura com número mais baixo e nunca regateava o seu apoio às mais diversas iniciativas. Coordenou nas Festas do Chiado a escolha dos livros e dos autores, e as suas decisões tinham a ver sobretudo com a revelação e o apoio a novos valores e com autores conhecidos com algo de relevante a dizer no momento. O Eduardo era um intelectual de uma curiosidade ilimitada. Nada lhe era estranho, e gostava de seguir caminhos inesperados e novos, antecipando, renovando, correndo os riscos inerentes aos caminhos da modernidade. Foi, por isso, controverso, uma vez que nunca deixava de dizer o que pensava. Desde que nos conhecemos tivemos sempre uma relação de grande amizade. Trocávamos ideias de livros e de autores que apareciam e que merecia a pena ler. Era um exercício que nos dava grande prazer, uma vez que isso nos permitia encontrar novos caminhos e novas pistas de reflexão. O tempo cruel vai-nos deixando, porém, o vazio daqueles com quem nos habituamos a dialogar. E de um momento para o outro deixamos de poder encontrar a voz amiga que nos é tão necessária. O Eduardo já está a fazer-nos muita falta e a amizade é algo que dói muito… E confesso que no “Público” começava sempre pela sua reflexão. Obrigado, Eduardo, até à vista!». Conheci-o era ele jovem assistente de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. No início dos anos oitenta estava no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova. E no final da década estava em Paris, a desempenhar magnificamente a função de conselheiro cultural na Embaixada de Portugal, exercendo funções docentes no Departamento de Estudos Ibéricos da Sorbonne (Paris-I). Ainda estou a ouvir o seu entusiasmo, num restaurante do Quartier Latin, a dar-me conta de mil e uma ideias, que sempre tinha, para promover a cultura portuguesa. Não pode, aliás, fazer-se a história da promoção da cultura e da língua portuguesas no mundo sem seguir a acção de Eduardo Prado Coelho. E eu senti-o bem, quando andava pela UNESCO. Na Europália, com um grande amigo comum, Emílio Rui Vilar, teve um papel importante como comissário da literatura e do teatro, e em Lisboa-94, Capital Europeia da Cultura, teve a seu cargo a organização das conferências. Eduardo Prado Coelho foi autor de uma ampla bibliografia, onde se destacam o célebre “Estruturalismo – Antologia de Textos Teóricos” (1968), o estudo sobre teoria literária “Os Universos da Crítica – Paradigmas nos Estudos Literários” (1982), além de vários livros de ensaios “O Reino Flutuante” (1972), “A Palavra sobre a Palavra” (1972), “A Letra Litoral” (1979), “A Mecânica dos Fluidos” (1984), “A Noite do Mundo” (1987), “O Cálculo das Sombras” (1997), “Crónicas no Fio do Horizonte” (2004). Os dois volumes de “Tudo o Que Não Escrevi” mereceram o Grande Prémio de Literatura Autobiográfica da Associação Portuguesa de Escritores, em 1996. Foi nessa obra que afirmou, emblematicamente, que pretendia ser livre “para poder ser incoerente, contraditório, instável, deambulante, provocador, terno, insidioso, segundo a cadência emocional das horas e dos dias”, dizendo ainda: «Se eu tivesse uma ilha, os meus amigos chegavam em barcaças, cantavam baladas de marinheiros, bebiam cidra, deitavam-se com a boca salgada, faziam amor e adormeciam. Na falta de uma ilha, um livro». Era assim o Eduardo com uma extraordinária capacidade de ler, de recriar, de imaginar, de dialogar, de ir ao encontro da narrativa e da escrita, de querer entender para além das aparências, mas também de querer inserir-se no seu tempo. Foi o intelectual português que melhor entendeu a importância da inovação e da criação na contemporaneidade. E soube evoluir, sem deixar de cultivar uma linha de rumo, que só para os desatentos poderia parecer algo desconcertante. E, como acontece com quem está disposto a arriscar pelo erro e pela incompreensão, foi capaz de manter a frescura do espírito crítico, contra ventos e marés, numa coluna diária, exposta sempre à voragem dos dias que passam e esquecem. O seu “Fio do Horizonte” demonstrou, até ao último momento, uma vez que escreveu até que a traiçoeira morte lhe bateu à porta, que é possível manter motivos de interesse, sempre com a mesma capacidade de entender e de poder não ser entendido. Leiam-se também os “Diálogos sobre a Fé” (2004), escrito com o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Aí se percebe que o ensaísta tinha uma inquietação que lhe permitia pôr-se do outro lado, procurando a visão panorâmica do mundo e das ideias, longe dos sectarismos e da cegueira do imediato. Em “Nacional e Transmissível” (Guerra e Paz, 2006), escreveu sobre o que somos, o que temos, o que fazemos, o que gostamos, sobre o que pode ser tido como próprio, permitindo-nos entender como as identidades só se enriquecem abrindo-se. Como ele nos disse: “entregue apenas ao sabor das palavras — cada página é a página de rosto de um arquivo de afectos”.
Guilherme d’Oliveira Martins