A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

“A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa” é uma antologia organizada pelo Centro de Estudos Bocageanos (Setúbal, 2002) que merece andar nas mãos de qualquer visitante informado da extraordinária “Serra-Mãe”. Há dias, João Bénard da Costa, nas celebrações do Dia de Portugal em Setúbal teve, aliás, oportunidade para chamar as atenções para a cidade do sal, do sol e do sul e para a sua importância cultural. Ora, nesse lugar idílico, santuário da natureza, somos desafiados intensamente pela meditação e pela poesia.

UM LIVRO POR SEMANA
De 25 de Junho a 1 de Julho de 2007.



“A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa” é uma antologia organizada pelo Centro de Estudos Bocageanos (Setúbal, 2002) que merece andar nas mãos de qualquer visitante informado da extraordinária “Serra-Mãe”. Há dias, João Bénard da Costa, nas celebrações do Dia de Portugal em Setúbal teve, aliás, oportunidade para chamar as atenções para a cidade do sal, do sol e do sul e para a sua importância cultural. Ora, nesse lugar idílico, santuário da natureza, somos desafiados intensamente pela meditação e pela poesia. E com quanta emoção citou o Padre António Vieira a descrever Amesterdão, onde se confundiam os mastros e as velas dos navios com as casas plantadas à beira dos canais conquistados laboriosamente ao mar, para dizer que também na cidade do Sado, à vista da Arrábida, existiu essa simbiose estranha mas fecundíssima, de barcos a ser prolongamento das casas, numa terra em que sempre houve pescadores, artesãos, comerciantes, agricultores e anacoretas, num franciscaníssimo encontro entre a irmã natureza, o irmão mar, a irmã serra e tudo o mais. E, por todos, Frei Agostinho da Cruz é o mais intenso e prolífero dos intérpretes, dá-nos a chave para a sua escolha, vindo da longínqua Ponte da Barca: “Dos males que passei no povoado, / Fugi para esta Serra erma e deserta, / Vendo que quem servir seu Deus acerta, / Certo tem tudo o mais ter acertado”. Mas ainda diz: “Do meio desta Serra derramando / A saudosa vista nas salgadas / Águas humildes, quando e quando inchadas, / Conforme o vário vento vai soprando”… Ponhamo-nos no Conventinho de face voltada para o troço final do estuário do Sado, com o “Guia de Portugal” nas mãos e uma Ode do frade sob os nossos olhos. Depressa descobrimos o cenário idílico de um santuário natural único de que ali desfrutamos: “Verdes bosques da Serra, / Por entre penedias / Por mão da natureza repartidos…”. E Herculano proclama: “Salve, oh vale do sul, saudoso e belo…”, enquanto António Maria Eusébio, o Calafate, fala de “Saudoso e santo retiro”. Torga quer estar “Sozinho a ouvir o mar, que não diz nada. / Férias do mundo e de quem lá anda. / Concha de ouriço, mas desabitada, / Aberta no lençol da areia branda”. E Teixeira de Pascoaes fala da “Arrábida saudosa, além do claro Tejo, / Toda de cor lilás, em pleno azul-celeste”… Mas é Sebastião da Gama, na genealogia poética de Agostinho, quem dá maior ênfase à relação religiosa e pagã com a magnífica serra: “O murmúrio é a alma de um Poeta que se finou / e anda agora à procura, pela Serra, / da verdade dos sonho que na Terra / nunca alcançou”… E todos lembramos esse remate místico de recorte único: “Ai não te cales, água murmurante! / Ai não te cales, voz do Poeta errante!, / – senão a Serra pode despertar”. “Ao crepúsculo, a Serra é catedral / onde o órgão-Silêncio salmodia”… E no sito em que Frei Agostinho dizia ser “donde mais livre se caminha”, Sebastião orava: “Ó meu país do Sol! / Pressentimento / da claridade celeste! / Ó fonte da Pureza! / Ó minha / Serra toda pintada de Esperança / e debruada de azul!”. Tudo isto, no dizer de António Osório (o poeta contemporâneo da Arrábida e do Sado), com “os livros debaixo do braço, farnel / de poesia ambulante”. Mas Sebastião da Gama ironizava também. Imagine-se! De uns freixos destruídos: “Sem lamentos, sem ais / as árvores caíram… / Mas os engenheiros não puseram mais; / em seu lugar apenas / três cardos enfezados refloriram”. E Miguel de Castro, dedicando os versos a Sebastião e a Joana Luísa, botanizava a mata mediterrânica, em língua de poeta e de arrábido, sobre o “lugar de tão verde solidão”: “Arrábida: serra que trepavas / cabreiro buscando medronhos. / Lugar de frades, verdes pinheiros, / rosmaninho, mirto, / alecrim, / fumo das manhãs… / Branco areal onde dormias / com barcos e gaivotas. / Varanda de ver o mar”. E Zeca Afonso aludia aos gamos que “aportavam ao Portinho / Ao cheiro dum poema ou duma couve”. E António Osório fala-nos da Apanhador de Ervas, espécie cada vez mais rara deste maquis único: o ervanário, “metido naquela lojinha / meditativa e atarantada como uma coruja, e que cheira a plantas medicinais, a pólens, xaropes e chás com infalíveis nomes: aloés, camomila, genciana, Lúcia-lima, madressilva, passiflora, salva, valeriana – ervas virtuosas como amuletos”. A inesgotável poesia de um quotidiano pleno de transcendência e metafísica, os mesmos ingredientes que levaram Orlando Ribeiro a escrever o mais belo dos tratados de geografia e Raul Proença com Jaime Cortesão o mais entusiasmante dos roteiros. “São meia dúzia de alcantis de fraga aspérrima e quase a pique sobre o mar, espécie de labaredas petrificadas durante o auge dum incêndio, das quais a espaços se despenham pelos vales em desfiladeiros, em cataratas verde-negras, torcidas matas e bosquedos, dum tom ardente e voluptuoso, e cujos altíssimos ciprestes, donde em onde erguidos, tornam a serra ainda mais sombria e eriçadas. Em baixo o mar, com o seu vaivém, solapa as rochas, e ouve-se constantemente o seu lamento, cortado de estrondos surdos, baques de catapulta com que ele mina e arrenda as grutas que trespassam a serra, e que, ao chegar aos altos, dilatado pela ressonância das gargantas, é como a voz dum órgão dentro de uma nave gigantesca” (J. Cortesão). O fundamental, pois, é ler e ir.
                                                               Guilherme d’Oliveira Martins

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