UM LIVRO POR SEMANA
Semana de 30 de Abril a 6 de Maio de 2007
“Unicórnio, Etc.” foi publicado por ocasião da recente mostra documental da Biblioteca Nacional (2007) sobre as chamadas “antologias de inéditos de autores portugueses contemporâneos” organizadas por José-Augusto França entre 1951 e 1956. Era, naturalmente, uma revista, mas a necessidade de trocar as voltas à censura (“de um país não-legal”) levou o seu principal animador a usar esse subterfúgio de falar de “antologias” e de mudar de título todos os números (“por ideia macaca, de manguito às instituições”), com periodicidade aliás propositadamente irregular. O volumezinho, agora dado à estampa, recorda uma iniciativa que merece especiais atenções. Tratou-se, de facto, de um impulso individual do jovem José-Augusto França, com visão pessoalíssima, mas sem perder o sentido de geração, e é isso que concede grande interesse à série das (Uni, Bi, Tri, Tetra e Penta) “Córnio”. O dito de Rimbaud ecoa e não passa despercebido: “Il faut être absolument moderne”. No entanto, tratava-se de ser, antes de tudo (mas não só) fiel a Amadeo, Santa Rita, Pacheko e, naturalmente, a Almada e a Pessoa. E, nessa linha, há um sentido de ruptura e de mudança que pesa especialmente no que Miguel Real designa como “caldeirão revolucionário”, que procura ir ao encontro de uma “juventude cultural de horizonte estético europeu”, tendo pessoas tão diferentes como António Ramos Rosa, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, Tomás Kim, Adolfo Casais Monteiro, António Pedro, Sophia, Sena, Eduardo Lourenço, Alexandre O’Neill, Tomás Ribas, Alberto Lacerda, Fernando Lemos, Fernando Azevedo, Alfredo Margarido, Vespeira, Delfim Santos, José Marinho, David Mourão-Ferreira, António Quadros, Carlos Eduardo Soveral, Óscar Lopes, até ao próprio António Sérgio. Oiçamos J.-A. França: «Unicórnio nasceu na “Brasileira do Chiado”, onde muitas outras nasceram ou se geraram, desde meados dos anos 10. Nos seus anos 50, foi já em fim de época, nas transformações de então da cidade, isto é, do Chiado. Em 1960, já nada lá podia nascer (…) Na “Brasileira”, então, veio a ideia do Unicórnio, por efeito do convívio com os amigos surrealistas, quando ainda, nas mesas do café, se convivia, lendo o Diário de Lisboa, engraxando os sapatos, pagando a bica com gorjeta de dois tostões para acertar a conta, e aguardando horas do eléctrico para casa». Discutiu-se e discutiu o seu principal animador se o projecto fora ou não falhado. Pareceria que sim, mas José Régio, em artigo no Diário Popular, estaria em desacordo, naquilo que França viria a considerar como “uma polémica curiosa em que, ao contrário do que é costume, a posição crítica era do autor da obra e a defesa dela cabia ao seu crítico, que nela, uma vez ou outra, colaborara, também simpaticamente – não exactamente do mesmo lado de uma ideia da cultura portuguesa, mas no mesmo sítio dela…”. Régio era claro: «os cinco números dirigidos por José-Augusto França, e por mais pessimista que seja a posição pessoal dos seus colaboradores, documentam com brilho que uma boa revista portuguesa não é inferior a qualquer boa revista estrangeira. Só o provinciano pasmo de muitos nacionais perante o ‘lá fora’ – aqueles para quem Camus é a suma essência da mentalidade europeia e os medíocres dramaturgos americanos formidáveis criadores – não consegue ver a inexistência de abismos formidáveis entre o escol mental português e o estranho. Bastaria o interesse da colaboração inserta em “Uni-bi-tri-tetra-pentacórnio” para de modo nenhum haver sido inútil o esforço de fazer vir a público estes números». E J.-A. França responde: «cheguei à conclusão de que deveríamos começar a pensar-nos de fora para dentro, como expliquei no artigo final, se queremos ganhar o direito nacional de nos pensar de dentro para fora. (Nunca de fora para fora, é claro – e também para mim o Camus não é essência nenhuma, nem o T. Williams coisa muito por aí além da Broadway). Se não é por acaso que a maioria dos que foram colaboradores de ‘Unicónio’ se encontra hoje a viver no estrangeiro – também não foi por acaso que deles recebi as cartas em que, lamentando o fim (tanta gente que mo lamentou, pelo Chiado abaixo!), entendiam que assim se fizesse». Numa palavra, era chegado o tempo próprio para fazer um balanço e dar por finda a “empresa”… E o certo é que era a dimensão cosmopolita que importava sobretudo ao jovem director – tudo o mais poderia vir por acréscimo. Mas era preciso esperar, e era essa paciência que ia faltando.
Guilherme d’Oliveira Martins