«O Som e a Fúria» de William Faulkner (1897-1962) foi publicado em 1929, no ano da grande crise, está dividido em quatro partes e narrado por quatro personagens diferentes. O tema é o da decadência da família Compson, composta por figuras como Caddy, Benjy, Quentin e Jason, sem esquecer Dilsey, a criada negra. Caddy Compson é a figura marcante. Ela domina o romance, que se inicia com o relato algo patético, contado por Benjy, o idiota da família, que é o pretexto para que o escritor nos apresente uma extraordinária panóplia narrativa que constitui um exemplo pioneiro do chamado “gótico do Sul”. Estamos perante um grande clássico, ao lado de quantos temos visto – desta vez tendo como cenário o velho Sul racista dos Estados Unidos da América, no imaginário Condado de Yoknapatawpha. Como sabemos este «condado apócrifo» situa-se em Oxford, noroeste do Mississípi, numa cartografia imaginária criada por Faulkner para acolher 16 dos seus 19 romances. Yoknapatawpha surgiu primeiro no romance«Sartoris» (ainda sob o nome de Yocona), com 6200 metros quadrados de área e desenhado para o romance «Absalão, Absalão». A designação resulta de duas palavras de um dialeto indígena local, significando «a água deslizando lenta pela planície». O território é coberto por florestas de pinheiros e vastas plantações, propriedade de uma poderosa aristocracia branca esclavagista, cuja queda após a Guerra de Secessão é retratada por Faulkner com drama, imaginação e mestria. Porquê som e fúria? É “Macbeth” de Shakespeare que aqui se invoca: “uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum”… E temos o método do “stream of consciousness”, que corresponde ao expressivo cânone dos autores que revolucionaram a ficção contemporânea, como Proust, Joyce, Beckett e Kafka… António Lobo Antunes lembra-nos que o início do romance corresponde a um denso nevoeiro, que se vai dissipando. Num salto para dezoito anos antes é Quentin que depois toma a palavra para descrever a véspera do seu suicídio, e Jason prossegue a descrição do conflito familiar. É na quarta parte que o relato revela a chave de toda a trama. “Entendemos de súbito o que se nos afigurava estranho e confuso, e todo o quadro se abre luminosamente perante nós”. O passado esfuma-se no nevoeiro e pode tornar-se um ilusório anúncio do futuro. O sentido melancólico das personagens, a presença cruel do destino misturam-se e estão simbolizados choro convulsivo de Benjy… A decadência é quando a memória deixa de ser uma realidade positiva, passando a ser uma miragem em que o passado e o futuro se confundem. Como confessa António Lobo Antunes: “O Som e a Fúria possui a qualidade de ser um romance que, tal como a grande poesia, se relê no maravilhamento da descoberta: a todo o passo damos com pormenores que nos haviam passado despercebidos, em cada página nos emocionamos. Já visitei este livro mais de 30 vezes, e continuarei decerto a fazê-lo com o mesmo deslumbramento e o mesmo entusiasmo”. Que melhor síntese, para podermos ler e reler uma obra que retrata a triste decadência de uma sociedade vencida, insustentável, que se define pela melancolia de uma existência que irremediavelmente se dissipa, na tragédia de duas mulheres perdidas, Caddy e a sua filha? E nessa convergência de contradições, o género humano aparece contraditório e capaz de queda e ascensão. Daí o relato final de Dilsey, humano, desprendido do ódio, capaz de entender.
Agostinho de Morais