A AUTONOMIA DE PENSAMENTO
Pode dizer-se que Fernando Namora assumiu, ao longo da sua vida, uma atitude baseada na autonomia de pensamento e na liberdade pessoal, tornando-se dificilmente classificável, ainda que com aproximações a uma visão realista do mundo. Há uma forte componente testemunhal que assenta numa escrita clara e facilmente compreensível, muito preocupada com a experiência vivida e influenciada na dimensão existencial, onde se encontram o eterno mito de Sísifo e a presença do homem inconformado… E não é apenas o eco de Camus ou de Malraux que encontramos, mas de Kierkegaard, Dostoievski, Tolstoi, Huxley ou mesmo de Sartre. Do que se trata, como bem sentimos na “Cidade Solitária” (1959) e fundamentalmente em “Domingo à Tarde” (1961), é da procura da relação entre a singularidade, o reconhecimento e a angústia com a vida que segue o seu curso nas suas múltiplas contradições. E em “Diálogo em Setembro” (1966), um longo diário de invocação memorialística, encontramos a descoberta, através do contacto com a Europa das ideias, com as suas contradições e paradoxos, e da necessidade de compromissos diversos e complexos, num mundo em profunda mudança, consciente dos limites das receitas políticas ou das explicações simplificadoras. Eduardo Lourenço refere, aliás, que esse encontro com os outros em Genebra torna-se um “verdadeiro encontro connosco”, feito à distância. Como nos veem lá fora? Como nos vemos de fora? Ao longo do percurso literário, enriquecido pela sua experiência de médico, primeiro na província e depois no Instituto de Oncologia, vamos encontrando uma aproximação humana entre a importância da liberdade individual e a consideração da sociedade e da sua organização. O filme “Domingo à Tarde” (1966) produzido por António Cunha Telles, realizado por António Macedo, projetou na tela o romance no qual Namora associa a análise da realidade social e a existência individual, através do encontro de Jorge (Ruy de Carvalho) e Clarisse (Isabel de Castro), bem como de Lúcia (Isabel Ruth), assumindo no novo cinema português uma perspetiva que abria novos horizontes, salientando João Bénard da Costa a qualidade da adaptação, da conceção estética, da novidade formal e até a sua ousadia. Por isso o filme superaria o romance, mas de facto, essas qualidades só são possíveis (dizemo-lo nós) em virtude da capacidade de Fernando Namora.
LITERATURA E LIBERTAÇÃO
Compreende-se, assim, a afirmação de Namora: “A literatura é um processo de libertação e, por conseguinte, aspira à liberdade. Quer dizer que o seu ponto de partida é uma recusa aos constrangimentos. Quer dizer, ainda, que os constrangimentos estão na sua génese ou no desencadear da sua explosão, como tem sido proclamado por tantos criadores. Homem livre, pois, o escritor – ou que visceralmente deseja sê-lo. Tão livre, ou tão necessitado de o ser, que nem sequer pode estar de acordo com certas situações para que ardorosamente contribuiu: seja numa sociedade burguesa, seja numa sociedade proletária, ele sempre encontrará razões para a sua insubmissão e para o seu inconformismo, mesmo se, muitas vezes, se trate de uma contestação inconsciente” (in “Jornal sem Data”, 1988). De facto, o tempo revelou que a diversidade da obra produzida e legada por Fernando Namora nos permite encontrar pistas bastante fecundas que nos levam a compreender que o encontro sobretudo no início da carreira literária com o neo-realismo, não impediu a afirmação de um percurso singular que levou Fernando Pinto do Amaral a dizer que “tendo chegado a ser por meados do século XX o prosador português mais divulgado e traduzido em todo o mundo (antes da atual difusão de Saramago e Lobo Antunes), Fernando Namora inscreve-se no quadro de um neo-realismo progressivamente temperado por aspetos menos esquemáticos, que o irão aproximar das preocupações existencialistas”. O êxito retumbante de “Retalhos da Vida de um Médico”, sobre a sua experiência clínica na Beira Baixa e Alentejo, representa, assim, algo mais do que uma receita marcada pelo “espírito do tempo”, o que, aliás, permite encontrar já alguns sinais de cunho pessoal não apenas no sentido humanista e solidário, mas também na análise existencial contemporânea, podendo encontrar-se a maturidade reflexiva em “Rio Triste” (1982).
A COMPLEXIDADE DO NEO-REALISMO
Eduardo Lourenço chamou a atenção, com especial ênfase, para a complexidade do Neo-realismo. Carlos de Oliveira e Fernando Namora são referidos, aliás, como exemplos de independência de espírito e de um trilhar de caminhos próprios que ilustram bem a complexidade do fenómeno. A prevalência da forma nos critérios de avaliação estética sobre orientações ideológicas torna-se especialmente importante e integradora. E Namora, até mercê da evolução da sua obra e da não subordinação a critérios instrumentais, faz parte do grupo intelectual de que Lourenço se aproxima, mostrando bem (como o fez ao descobrir Pessoa) qual era o Neo-realismo que lhe merecia solidariedade tanto geracional quanto oposicionista: aquele mais livre esteticamente falando… Como Rosa Maria Martelo afirmou em 2014, na apresentação em Coimbra do segundo volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço da Gulbenkian, o ensaísta teve uma importante e inequívoca “participação geracional ao lado dos jovens do Novo Cancioneiro quanto nas leituras coetâneas que foi fazendo do Neo-realismo, e ainda nas leituras retrospetivas que depois elaborou. Como defende, “o Neo-realismo é a expressão literária de qualquer coisa muito mais ambiciosa, muito mais importante” do que o plano literário ou artístico, ou sequer cultural”. Assim, recorre à palavra “galáxia”, dizendo «que o Neo-realismo foi “o aparecimento em Portugal da galáxia marxista, da galáxia da cultura marxista”, capaz “de se determinar em relação praticamente a todos os temas da sociedade portuguesa”. E ao recordar o papel da coleção Novo Cancioneiro nos inícios da década de 40, pergunta: “Haveria nesse utopismo um excesso de ilusão, como o tempo o provou? Sem dúvida. Mas nos melhores, a crença num futuro menos inumano era vivida e sincera”». E Fernando Namora correspondeu, com assinalável coerência, à compreensão de que a liberdade na literatura constituía um valor inestimável, que obrigou a uma especial atenção à realidade social e humana e a uma exigência crítica capaz de entender a complexidade da compreensão. Daí que o ponto de partida da liberdade do escritor seja, de facto, a recusa dos constrangimentos – que sempre assumiu, em benefício da sua obra e da sua coerência, atribuindo à arte e à autonomia individual os lugares necessários.
Guilherme d’Oliveira Martins
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