UM LIVRO POR SEMANA
De 4 a 10 de Dezembro de 2006
“Homens em Tempos Sombrios” de Hannah Arendt (Relógio d’Água, 1991) é um repositório de interrogações sobre o pluralismo e a singularidade da sociedade humana. A tomada de consciência dos “tempos sombrios” corresponde ao século XX, no qual a barbárie tomou o lugar da civilização anunciada. E é Bertold Brecht que fala, no poema “Aos que virão a nascer”, de “desordem e de fome, dos massacres e dos assassinos, da revolta contra a injustiça e do desespero” de “quando havia injustiça e não revolta”… Os tempos sombrios são, afinal, os tempos de uma humanidade real, que tomou a consciência viva de que o mal poderia tornar-se banal, quando antes preferira acreditar em alguns sinais que pareciam anunciar auroras de esperança. “Mas até nos tempos mais sombrios, temos direito de esperar ver alguma luz, e é bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e dos conceitos como da chama incerta, vacilante, e muitas vezes ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo…”. Hannah Arendt procurou que “olhos tão acostumados às trevas como os nossos” pudessem descobrir pessoas que souberam orientar-se por uma luz de esperança. Sobre Lessing deparamo-nos com a interrogação essencial sobre a amizade (philia), não apenas como “ausência de facções e guerras civis”, mas como diálogo e respeito mútuo. “Só falando daquilo que se passa no mundo e em nós próprios é que o humanizamos, e ao falarmos disso aprendemos a ser humanos”. Por um momento, voltamos a ouvir Kafka: “É difícil dizer a verdade, pois embora só haja uma verdade, ela está viva e portanto tem um rosto vivo e mutável”. Por isso, é Lessing quem resume o pensamento fundamental de Arendt, que tantas perplexidades e dúvidas causou: “Que cada homem diga o que considera verdade, e deixe ao cuidado de Deus a verdade em si!”. Trata-se, aliás, do humanismo e do mesmo desprezo pela arrogância dos perfeccionistas, que também encontramos em Waldemar Gurian. Já sobre Rosa Luxemburgo, mulher lúcida e voluntariosa (como Karen Blixen, aliás, Isak Dinesen), Arendt põe-nos diante da perversidade da herança bolchevique: “na verdade acreditava tão pouco na tomada do poder a qualquer preço que ‘temia muito mais uma revolução deformada do que uma revolução falhada’ – e era esta, efectivamente, ‘a grande diferença’ entre ela e os bolcheviques”. Temos, aliás, aqui uma premonição que só poucos viram com olhos de ver. E H. Arendt é claríssima, designadamente sobre Brecht, na demonstração das contradições entre pensamento e acção e na tensão permanente entre preconceitos ideológicos e vida. Inesperadamente, deparamos ainda com o retrato de um cristão no trono de Pedro. João XXIII ousou ser simples, ser desconhecido e pouco estimado, o que o poupou a ansiedades e extenuantes perplexidades, a partir da força de ousar ser simples, sem se levar muito a sério, estando sempre disponível para ouvir. Também Karl Jaspers, cidadão do mundo, nos ensina a ver no múltiplo uma “Unidade que a diversidade ao mesmo tempo oculta e revela”. E assim “a nova e frágil unidade derivada do domínio técnico sobre a Terra só pode ser garantida num quadro de acordos mútuos e universais, que acabariam por dar origem a uma estrutura federada de âmbito mundial”… Enquanto Hermann Broch se preocupa com a “desintegração do mundo ou a dissolução dos valores”, fruto da secularização extrema, e reclama um “padrão ético” como forma de contrariar que “todas as áreas de valor se transformem, de um momento para o outro, em áreas de não-valor, todo o bem em mal”. No fundo, o “padrão absoluto e absolutamente transcendente” para ser “absoluto ético” tem de transferir valor à vida humana nos seus diversos aspectos. Estamos diante de um “imperativo ético” que Broch faz evoluir de uma dimensão espiritual para uma perspectiva vital e histórica. “A missão era o imperativo ético, e tarefa que não se podia iludir era o pedido de socorro dos homens”, que a literatura ou o conhecimento, por si sós, não resolviam. E para Walter Benjamin, qual pescador de pérolas, haveria a convicção de que “embora tudo quanto vive esteja sujeito à destruição do tempo, o processo de corrupção é ao mesmo tempo processo de cristalização”. A vida, dir-se-ia que se vai transformando em “insólitos tesouros”…
Guilherme d’Oliveira Martins