UM LIVRO POR SEMANA
De 6 a 12 de Novembro de 2006
“Del Sentimento Trágico de la Vida en los hombres y en los pueblos” de Miguel de Unamuno (1864-1936) é uma obra-prima do pensamento europeu. A obra foi terminada em 1912 e quando saiu foi rodeada de incompreensões. Hoje, na distância do tempo, apresenta toda a sua força e pujança, ao lado das de Marco Aurélio, Kierkegaard ou Antero, na interrogação sobre a existência humana. Não será a consciência uma enfermidade? – pergunta o autor. Mas qual o ponto de partida pessoal e afectivo de toda a filosofia e de toda a religião? Afinal, não podemos conceber-nos como não existência. Daí a sede de imortalidade inerente à existência pessoal, como pulsão vital dificilmente racionalizável. Assim se entendem as limitações da teologia, incapaz tantas vezes de responder às interrogações essenciais. O que une a fé do carvoeiro à fé de Teresa de Ávila? A cada passo os diversos racionalismos procuram respostas demonstráveis, para as angústias vitais, mas as soluções depressa se transformam em dissoluções. Demonstram-se os limites? Justificam-se? Paradoxalmente, sendo limites, deixam sempre campo para o que não pode demonstrar-se. Hume ou Kant disseram-no com meridiana clareza. Leia-se o “Parménides” de Platão – “cada um existe e não existe, ele e o outro existem e não existem, aparecem e não aparecem em relação a si mesmos e uns em relação aos outros”. E Unamuno acrescenta: “Todo o vital é irracional, e todo o racional é antivital, porque a razão é essencialmente céptica”. O racional é relacional e a razão limita-se tantas vezes a relacionar elementos irracionais… Sente-se intensamente o passo laborioso do pensador, interrogando-se, jogando com os elementos disponíveis, em busca da verdade, como realidade fugidia e contraditória. E encontra o amor, a dor e a compaixão – amor filho do engano e pai do desengano, consolo no desconsolo, único remédio contra a morte… E sente-se no amor que a carne tem espírito. “Queremos não só salvar-nos, mas salvar o mundo do nada. E para isto Deus. Tal é a sua finalidade sentida”. A fé inicial é informe, vaga, caótica, potencial. É a esperança que a orienta – “se a fé é a substância da esperança, esta é por sua vez a forma da fé”. O Deus cordial leva-nos à vida, à dor e à compaixão – e à caridade como impulso para libertar o próximo da dor. Aí está o cerne da espiritualidade. Escândalo, agonia (no sentido de luta) e loucura – “e é loucura grande querer penetrar no mistério além-túmulo; loucura querer sobrepor as nossas imaginações, cheias de contradição íntima, por cima do que uma sã razão nos dita”. E o salmantino cita o nosso Antero: “Disse um homem de Estado inglês (…), que era também por certo um perspicaz observador e um filósofo, Horácio Walpole, que a vida é uma tragédia para os que sentem e uma comédia para os que pensam. Pois bem: se temos de acabar tragicamente, nós, portugueses, que sentimos, prefiramos esse destino terrível, mas nobre, ao outro que nos está reservado, e talvez num futuro não muito remoto, a Inglaterra que pensa e calcula, tenha o destino de acabar miserável e comicamente”. E a personagem de Quixote, símbolo da humanidade contraditória, vem à baila – “a ciência não dá a Don Quixote o que este lhe pede. ‘Que não lhe peça isso – dir-se-á; que não se resigne, que aceite a vida e a verdade tal como são’. Mas ele não as aceita assim, e pede sinais, ao que o move Sancho, que está a seu lado. E não é que Don Quixote não compreenda o que compreende quem assim lhe fala, ele que procura resignar-se e aceitar a vida e a verdade racionais. Não; é que as suas necessidades efectivas são maiores. Pedanteria? Quem sabe!…” E é assim que nós próprios também continuamos a clamar no deserto, segundo o sentimento trágico da vida… Unamuno sentiu-o na pele à beira da morte, como ressentimento trágico, no paraninfo de Salamanca, a 12 de Outubro de 1936, perante o grito de Millán Astray “Abajo la Inteligência!; Viva la muerte!”. “Às vezes ficar calado equivale a mentir, porque o silêncio pode interpretar-se como aquiescência (…) Este é o templo da inteligência. E eu sou o sumo-sacerdote. Estais a profanar o seu recinto sagrado. Vencereis, porque vos sobra a força bruta. Mas não convencereis. Para convencer há que persuadir. E para persuadir seria necessário algo que vos falta: razão e direito na luta. Parece-me inútil pedir-vos que penseis na Espanha…”
Guilherme d’Oliveira Martins