A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

“Goa ou o Guardião da Aurora” de Richard Zimler (Gótica, 2005) faz parte de uma saga, a da família Zarco, de raízes luso-judaicas, e é uma interrogação inteligente, rigorosa e muito bem escrita, sobre a memória. Fala-se de Goa, no final do século XVI, e da acção da Inquisição. Zimler nasceu em Nova Iorque (1956) e vive no Porto, onde lecciona jornalismo.

UM LIVRO POR SEMANA
De 9 a 15 de Outubro de 2006


“Goa ou o Guardião da Aurora” de Richard Zimler (Gótica, 2005) faz parte de uma saga, a da família Zarco, de raízes luso-judaicas, e é uma interrogação inteligente, rigorosa e muito bem escrita, sobre a memória. Fala-se de Goa, no final do século XVI, e da acção da Inquisição. Zimler nasceu em Nova Iorque (1956) e vive no Porto, onde lecciona jornalismo. Os seus romances têm conhecido um grande êxito internacional, e isso fica a dever-se ao talento e à agilidade com que trata os temas e ao modo de pegar e desenvolver o romance histórico, com uma pitada de enredo policial e a forte presença de uma reflexão séria sobre a cultura e a vida humana. “De que pensas tu que é feita a memória?” – pergunta o pai a Tiago Zarco. E depois de um encolher de ombros, o jovem tenta responder, sem convicção: “Talvez seja de tudo o que já vi…” Mas não. A memória é muito mais. E esta invocação de Goa, a somar a todas as outras recordações de várias gerações desta família, serve para dizer que a vida faz-se de elos indeléveis e difusos sem os quais não poderemos encontrar-nos. E em cada um dos provérbios que Nupi ensinava a Tiago e a sua irmã Sofia havia o começo da revelação dos enigmas essenciais do ser – como no dizer que “os guardiães da aurora conhecem a noite melhor que ninguém”, querendo significar que “só quem conhece a tristeza conhece também a alegria” ou, segundo o próprio Tiago, “quem protege os outros muitas vezes vê-se perante os piores perigos”. Tiago, preso pelo Santo Ofício, recorda a infância e a adolescência – os encontros e desencontros com a vida e o amor de Tejal. Nos calabouços, conversa com Phanishwar, o companheiro de cela, que se manifesta confuso perante o procedimento dos inquisidores, já que a sua consciência não o acusa de ter cometido qualquer desrespeito religioso. Um judeu e um jaina falam sobre as suas crenças e sobre a vida quotidiana, hábitos, costumes, cheiros, sabores, sentimentos, humores… E quando, no auto-de-fé, Phanishwar morre na fogueira, ficamos com a sensação de que são a ignorância e a cegueira que levam a confundir feitiçaria com as práticas religiosas de um indiano recto e bom. O ódio fanático contrapõe-se, a cada passo, à necessidade de respeito e de compreensão. E Tiago, que ajudara seu pai a abreviar a existência para não continuar a sofrer a indignidade nas masmorras de Goa, é expulso da cidade e condenado a cumprir pena de prisão em Lisboa. Mas, ao terminar o cumprimento da pena, imagina uma complexa armadilha pela qual deveria descobrir quem os denunciou, a ele e ao pai, e na qual deveriam cair os responsáveis que tinham levado o pai ao fim, Phanishar ao fogo e a tudo o que ele próprio, Tiago, sofreu… Mas ao regressar a Goa tem o choque de saber que Sofia, sua irmã querida, se matou, que Wadi, que seu primo e cunhado, comete um crime hediondo (tresloucado como o de Otelo) e será condenado à morte, corroído pelo ciúme e pela traição, que Tejal refizera a sua vida, sem que Tiago pudesse conhecer o seu filho que ela tivera e de saber ainda que a traição tinha tido origem familiar. Até a sua armadilha teve efeitos, agora inúteis… De súbito, vê o mundo desabar sobre ele. Resta-lhe ir para junto do sultão de Bijapur, ilustrar livros sagrados e escrever as memórias, dedicadas aos homens e mulheres que vira apodrecer em nome de Cristo, Maomé e Krishna: “desejaria poder dar-lhes mais do que isto, mas isto é tudo o que tenho”. E o que é, afinal, a memória? Pouco e muito, tudo, afinal: “Um palácio na alma, pensamentos entrelaçados num cordão, uma ponte entre tudo o que fomos e o que havemos de ser”?  


Guilherme d’Oliveira Martins

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