A Vida dos Livros

“Retrotopia” de Zygmunt Bauman (Premier Parallèle, 2019)

O livro acaba de sair em Paris e constitui como que um testamento do grande pensador que lançou a noção de “sociedade líquida”, para significar o mundo contemporâneo instável, atomizado e imediatista…

ELOS FRÁGEIS E PASSAGEIROS
Ao assistirmos ao enfraquecimento dos elos sociais, da coesão social e da regulação, presenciamos uma guerra anónima de todos contra todos, na qual prevalece o medo, a desconfiança e a indiferença. Se fomos formados como indivíduos competitivos, na sociedade, na escola, no trabalho, partimos do pressuposto que podemos ser autossuficientes e somos levados, mais tarde ou mais cedo, a perceber a nossa impotência perante a complexidade dos desafios que nos são lançados. Estamos perante a hipervalorização da singularidade e a tentação de negarmos a relação com os outros e com a diferença. E Bauman, nesta obra derradeira, lembra que “o que ainda designamos como ‘progresso’, por inércia, evoca emoções que estão nos antípodas das que Kant, que inventou o conceito, considerava”. A maior parte das vezes, falar de progresso significa o medo de uma catástrofe iminente. E o pensador recorda o célebre texto de Walter Benjamin sobre o “Angelus Novus” de Paul Klee: “A face do Anjo da História está voltada para o passado. Onde nós percebíamos uma cadeia de eventos, ele vê uma catástrofe única que continua empilhando destroços e atirando-os para diante dos seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos, e tornar inteiro o que foi esmagado. Mas uma tempestade está soprando do paraíso; o anjo ficou preso em suas asas com tal violência que não pode mais fechá-las. Essa tempestade empurra-o irresistivelmente para o futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto os escombros crescem, diante dele, rumo ao céu. A tempestade é o que chamamos progresso.” E pergunta-se: quantas ocupações e empregos irão desaparecer, como iremos sobreviver? Até que ponto os robôs não ocuparão os espaços da humanidade? Enquanto as utopias, como a de Thomas Morus, procuravam no futuro uma sociedade melhor, uma retrotopia busca o bem-estar individual centrado numa visão retrospetiva. E o certo é que as sociedades de hoje tendem a organizar-se, em primeiro lugar, contra o que as ameaça, designadamente os migrantes e os imigrados – para defender a sua política e a sua cultura local, como tem salientado Michael Walzer. E assim nasce a ideia perigosa de construir um pequeno Estado, limpo de todos os estrangeiros e todas as diferenças, baseado numa utopia às avessas, num passado de pureza, que nunca existiu, supostamente protegido de qualquer importuna proximidade de quem chega e é diferente. Estamos perante o efeito de uma desigualdade desregulada, que se agrava. Quem se sente ameaçado procura reforçar o seu conforto. E há um certo regresso ao tribalismo, que leva ao paradoxo dos muros que se elevam, enquanto as fronteiras tendem a desaparecer. A proteção e a compaixão, mais do que o ódio e a divisão, reportam-se aos mais próximos, enquanto os outros devem ficar à distância. A proteção social deveria assim ser reservada aos nossos, mais do que aos outros. No fundo, uma visão protecionista parece prevalecer – por exemplo, quem chega de fora não tem lugar, ocupa não-lugares.

UM LUGAR “SEM LUGAR”…
“O mundo que é o nosso não lhes reserva qualquer lugar, mas eles ocupam provisoriamente o coração dos nossos bairros”. Encontrar-se perante essas pessoas “sem-lugar” significa tomar contacto direto com realidades inesperadas, de efeitos secundários indesejáveis. Um lugar que era conhecido, torna-se inesperadamente desconhecido, e daí a tentação de fechar as fronteiras desse território antigo, para recuperar a situação anteriormente conhecida, ignorando que são as novas circunstâncias responsáveis pela situação agora vivida. Trata-se de procurar viver a ilusão de manter distante uma realidade que existe e que não podemos ignorar. Entretanto as desigualdades agravam-se. Na viragem para o atual século, o valor acrescentado gerado pelo crescimento económico reverteu basicamente para os mais ricos, enquanto a restante população viu a riqueza escapar-se-lhe – o que se agravou com a crise financeira de 2007-2008. Os números são esclarecedores e preocupantes: a metade da população mundial com menos rendimentos (3,5 mil milhões de pessoas) detém apenas 1% da riqueza mundial total, ou seja, exatamente o mesmo que é detido pelas 85 pessoas mais ricas do planeta… Z. Bauman fala-nos de dois tipos de injustiças sentidas pelas populações: as habituais, há muito consideradas e de algum modo aceites; e as novas, cuja proporção aumentou significativamente, as quais sendo porventura de injustiça inferior às outras, assumem um carácter mais chocante pela novidade, podendo dar lugar à revolta… De facto, na Idade Média não foram as injustiças mais chocantes, como o não pagamento de remuneração, que levaram à rebelião dos servos, mas o facto de os terra-tenentes terem exigido mais do que anteriormente. Assim, o momento presente, suscita preocupações e perplexidades que poderão gerar tensões sociais com consequências imprevisíveis.

COMO ENCARAR A REALIDADE PRESENTE?
O autor de “Retrotopia” refere, assim, uma consciência cosmopolítica, que abre as portas à união e à cooperação. Em vez da procura de um inimigo ou da divisão entre “nós e eles”, o desafio do nosso tempo consiste em conceber, pela primeira vez na história da humanidade uma ideia que não se apoie na lógica da separação. Nós habitantes humanos da terra vivemos uma situação perfeitamente clara, na qual somos obrigados a optar entre duas alternativas – a cooperação à escala planetária ou as valas comuns… Como a sociedade líquida, a retrotopia não representa, porém, solução para o futuro. Olhem-se os problemas mais graves com que nos debatemos: a defesa do primado da lei; os fenómenos migratórios; a qualidade da democracia; a cultura da paz; o combate ao aquecimento global; a proteção do meio ambiente; o desenvolvimento sustentável; a cooperação contra a pobreza; a equidade intergeracional; a ciber-segurança; a evolução do mundo digital e a preservação da diversidade cultural – eis o que se impõe, em lugar de planos rígidos ou soluções baseadas na inércia, uma estratégia baseada, em instituições que favoreçam a representação, a participação e a mediação centradas numa cidadania livre, responsável e ativa. Trata-se, no fundo, de fortalecer os elos da sociedade, a coesão social e a regulação, a sustentabilidade e a justiça, superando a guerra anónima de todos contra todos, privilegiando o respeito mútuo, a confiança e a responsabilidade. Mais que “indivíduos competitivos” precisamos de cidadãos ativos, na sociedade, na escola, no trabalho, não autossuficientes, mas solidários e cooperativos, capazes de ligar o mérito e a justiça, a atenção e o cuidado, a experiência e o exemplo, a aprendizagem, o conhecimento e a sabedoria, a clareza e a complexidade. 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

Subscreva a nossa newsletter