"O Olhar do Outro" foi durante o último
fim de semana tema de um encontro com o teólogo católico inglês
James Alison (1959), que teve lugar no CNC. Esteve em causa a análise
e o debate aprofundado num pequeno grupo do pensamento do filósofo René
Girard, em busca de uma nova maneira de focalizar a vida cristã. Alison
tem vasta obra publicada, sendo hoje um dos mais escutados especialistas de
Girard. Os temas abordados foram, ao longo de dois dias de trabalho intenso:
a introdução ao pensamento de Girard sobre o desejo e sobre o
mecanismo do "bode expiatório" (tema central da principal obra
do filósofo francês de Stanford – Le Bouc Emissaire); uma nova
maneira de conceber a salvação e o perdão; a compreensão
da fé e a resposta à pergunta – "Em que consiste a oração".
Segundo Girard o "bode expiatório" supõe sempre a "ilusão
da perseguição" e a procura da "culpabilidade das vítimas"
– como aconteceu na peste negra do século XIV, em que os judeus foram
acusados de envenenar os rios e os cursos de água. Temos de partir do
facto de haver em todos nós um desejo mimético, isto é,
aferido pela comparação com o outro. O desejo do outro é
anterior ao nosso. E há a tendência para procurarmos uma unanimidade
contra alguém. A história é, assim, normalmente contada
a partir dos perseguidores. O génio da Biblia é, porém,
a coexistência entre a história e a crítica da história.
No Novo Testamento, encontramos uma mudança radical de perspectiva –
a história passa a ser vista do lado da vítima. Os Evangelhos
("testemunho apostólico") gravitam em torno de um sacrifício,
como todas as mitologias. Mas neste caso a lógica habitual inverte-se,
uma vez que a vítima rejeita todas as ilusões de perseguição
e recusa o ciclo da violência e do sagrado. O "bode expiatório
torna-se o cordeiro de Deus". E assim é destruída para sempre
a credibilidade da representação mitológica tradicional.
"Toda a violência revela doravante o que revela a paixão de
Cristo, a génese imbecil dos ídolos sangrentos, de todos os falsos
deuses das religiões, das políticas e das ideologias". Nesta
lógica o pecado deixa de ser o centro de todo o fenómeno religioso
(como entre nós tem insistido António Alçada Baptista).
A ideia de salvação torna-se mais importante do que a ideia de
"queda". O processo de "salvação", assente
na relação com o Outro-Outro que é Deus, é, deste
modo, uma reconciliação (atonement), a afirmação
da capacidade de aprender a narrar uma história própria e diferente.
E a criação divina torna-se um acto contemporâneo, no sentido
da felicidade e da liberdade. Cristo ressuscitado, em Emauz, depois da violência
de que foi vítima, vem romper com o sagrado maléfico – superando
completamente o sacrifício. E o perdão torna-se gratuito, pacífico
e reconciliador.
Guilherme d`Oliveira Martins