UM LIVRO POR SEMANA
De 9 a 15 de Janeiro de 2006
Temos hoje de recordar a biografia de Almeida Garrett da autoria de Francisco Gomes de Amorim, num momento muito triste como é o da demolição da última casa do autor de “Viagens na Minha Terra”. Falamos de “Garrett – Memórias Biographicas”, Imprensa Nacional, 1881 a 1884, obra esgotadíssima, mas fundamental. Ao lê-la, percebe-se ainda melhor como houve indiferença e insensibilidade em relação à memória de um dos nossos maiores. Mais do que dinheiro, o que faltou foi inteligência para encontrar uma solução digna. E se seguirmos o percurso de Garrett na biografia de Amorim, notamos a cada passo a grande sensibilidade que teve relativamente à memória dos nossos maiores e às nossas raízes. Agora houve ingratidão (como tem dito, por todos, o Professor José-Augusto França). E quanto enlevo encontramos no testemunho do amigo dilecto de Garrett sobre a instalação na casa da Rua de Santa Isabel… No final de 1853, Garrett encontrou uma casa que estava a ser construída, a Campo de Ourique. Era uma moradia elegante, com um pequeno jardim, em frente do cemitério inglês. Um lugar romântico por excelência. O poeta gostou muito, foi amor à primeira vista. Arrendou-a. E enquanto aguardava pelos acabamentos, que seguiu com grande cuidado (a ponto de constar da obra em apreço uma carta onde a casa é descrita até ao mais ínfimo pormenor), transferiu para lá os seus móveis da Rua do Salitre e foi morar provisoriamente, em Junho de 1854, para a Rua Direita da Junqueira, na casa do Marquês de Angeja. A sua filha Maria Adelaide estava então no Recolhimento das Salésias. E o escritor escreve-lhe sobre a nova casa de Santa Isabel: “Quando a arranjar cuidarei também do teu quartinho que será o melhor da casa, o próprio para uma senhora como tu hás-de sair daí”. Foi o próprio Garrett que dirigiu a mudança dos móveis do Salitre para Santa Isabel. Gomes de Amorim acompanha-o. Dormem nas águas furtadas, mas o calor excessivo leva-os a regressarem à Junqueira. Quando se instalou a biblioteca da nova casa, Garrett ficou tão entusiasmado que ofereceu um almoço, frugal mas luzido, aos seus amigos mais íntimos – Mendes Leal, Rebelo da Silva, Rodrigo Felner e Amorim, naturalmente. A refeição terminou por volta do meio-dia, e Garrett, em frente da Igreja de Santa Isabel, disse a Mendes Leal: “Isto abriu-se, mas não se abriu, tal como o teatro Agrião” (que era a alcunha que Castilho tinha posto ao Teatro Nacional, por ser construído sobre estacas). “Inaugurou-se e não se inaugurou. Portanto, ficam todos intimados para comparecer, quando se abrir outra vez a valer, com o cenário armados nos seus lugares. A peça nova há-de ser mais bem escolhida: em vez de modesto almoço, haverá jantar, não direi pantagruélico, porém suficiente e mais abundante em líquidos correspondentes. O empresário espera e confia que os senhores do público lhe não faltem com a sua presença”. O sítio era para Garrett de eleição. Houve até quem falasse de premonição romântica pela proximidade do cemitério. Um dia, aliás, foi com Amorim visitar, de fronte de casa, no referido cemitério, o túmulo do grande romântico Fielding (o autor de “Tom Jones”, falecido em Lisboa a 8 de Outubro de 1754) no Cemitério inglês… E quando o biógrafo começou a ler a inscrição da campa, Garrett interrompeu-o e disse que tudo era falso, a verdade era que Walter Scott o cognominara justamente de “pai do romance inglês”. Mais do que isso, foi o pai do romance moderno – apesar da ingratidão humana que deixara mulher e filhos na miséria. Tanto bastava. E deu meia volta: “Vamos ver as minhas obras e fique advertido de que vou ser vizinho deste ilustre defunto”. E estava muito satisfeito, em vésperas de pôr de pé, a sua “Crónica de D. Pedro IV, ou Vinte Anos de História Contemporânea”, que infelizmente não passou de projecto. A obra foi planeada e seria preparada cuidadosamente com a ajuda de Gomes de Amorim. No entanto, a doença do peito de que Garrett padecia agrava-se. Mesmo assim, continuava a fumar. Arrastavam-se, porém, as obras de Santa Isabel (“O diacho é a casa”, repetia). E os médicos insistiam na necessidade de uma rápida mudança. Pode haver perigo pelo eventual cheiro das tintas? O médico assistente, Dr. Barral, vai a Santa Isabel e diz não haver… A mudança faz-se, mas o escritor, que preparara a casa com grande cautela e entusiasmo, sente agravada a sua saúde. Morrerá naquela casa, que agora é destruída. O livro lê-se com paixão. E merece ser completado pela leitura de um outro texto fundamental da autoria da Doutora Ofélia M. C. Paiva Monteiro, “A Formação de Almeida Garrett. Experiência e Criação”, Coimbra, 1971, e pela biografia feita pelo saudoso Embaixador José Calvet de Magalhães, “Garrett. A Vida Ardente de Um Romântico”, Lisboa, 1996. E percebemos ainda melhor o dó que sentimos perante um irreversível acto de insensibilidade… Basta citar o próprio Gomes de Amorim: “A casa onde morreu Garrett, e a mobília que foi dele, podiam e deviam conservar-se como a nau ‘Vitória’, se nós, que macaqueamos tudo, imitássemos também os exemplos dignos de admiração e do respeito dos povos cultos” (III, p. 619). Eis a resposta a quem diz que faltava interesse patrimonial à casa!