REFLEXÃO DA SEMANA
De 1 a 7 de Agosto de 2005
O escritor Elias Canetti (1905-1994) é um símbolo do século XX, pelas análises que nos deixou. Nascido há cem anos, a 25 de Julho, em Rutschuck, cidade hoje búlgara, então integrada no império austro-húngaro, Canetti era originário de uma família culta de judeus sefarditas. Os pais tinham-se conhecido em Viena, falavam alemão entre si, mas o jovem Elias comunicava em ladino com a família e em búlgaro com os criados. A memória foi sempre uma preocupação sua: “inclino-me perante a recordação, a recordação de cada ser humano. E não oculto a aversão que sinto ante todos os que se permitem intervir cirurgicamente nas recordações, para que se pareçam com as recordações dos demais…”. Foi um peregrino perpétuo, um emigrante, um nómada. A sua vida é um caminho que ilustra o drama europeu. A família partiu em 1911 para Inglaterra, para Manchester. Seu pai era um comerciante com sucesso no sector têxtil, com uma grande curiosidade intelectual. Ao filho ofereceu como primeiras obras, quase que iniciáticas, “As Mil e Uma Noites” e “Dom Quixote de la Mancha”. A morte repentina do patriarca em 1912 impressionou profundamente Elias, marcando-o para sempre na busca contra a falta de sentido da morte – “a mais alta e mais formosa tarefa do ser humano é lutar contra a morte”… Em 1913, inicia um périplo entre Zurique, Viena e Francoforte. Aprende alemão, sob a ditadura férrea de sua mãe, com tanto sucesso que o alemão tornar-se-á a sua língua literária, afirmando-se como um dos grandes escritores contemporâneos. Está em Viena quando começa a guerra. Aí sente os efeitos da massa cega e ignara, quando ele e os irmãos, crianças pequenas, tiveram de ser salvos da populaça iracunda pela mãe, porque cantavam “God Save de King”, quando ouviam os austríacos entoar cânticos patrióticos. O jovem não compreendia o ódio que então se sentia. Por isso, ao chegar a Zurique, considerou ter passado a viver num sítio civilizado, onde se falava razoavelmente. Começou a perceber que a irracionalidade das massas era algo natural. Ele próprio em Francoforte, ao participar numa manifestação operária, depois da guerra, sentiu-se impulsionado por uma força desconhecida e perigosa. A “massa” agia para além da racionalidade individual. Nos anos vinte volta a Viena para estudar e doutorar-se em química. Casa-se com Veza Taubner. Assiste às aulas do iconoclasta Karl Kraus – que o influencia, em especial no modo de comunicar. É deste período a sua obra “Auto de Fé”. É um livro fundamental, que poucos compreendem. Só em 1935 consegue editor e apenas em 1946, graças à versão inglesa, alcança sucesso. Interroga cruamente a raiz do fenómeno totalitário. Peter Kien é um sinólogo, um cientista brilhante, mas “uma cabeça sem mundo”. A execrável Teresa Krumbholz persegue a fama e o dinheiro e procura seduzir Kien, que acaba morto no incêndio da sua biblioteca. É uma alegoria terrível sobre o que acabará por acontecer à Europa sob o jugo totalitário. A partir da segunda metade dos anos trinta Canetti parte para Inglaterra. Aí continuará a reflectir sobre as raízes da barbárie. Os temas da morte e da massificação tornam-se centrais na sua reflexão. Escreve o grande ensaio “Massa e Poder”, sua obra-prima, que termina em 1959. Antes voltara fugazmente à narrativa em “As Vozes de Marraquexe”, sobre as raízes judaicas sfarditas da sua cultura. Mas só tardiamente o seu génio será reconhecido, apesar de Thomas Mann e de Hermann Broch terem elogiado o talento desse jovem desconhecido. É-lhe outorgado o Prémio Nobel da Literatura (1981) e hoje ninguém pode compreender a tragédia do século XX sem ler a sua obra…