UMA NOÇÃO DINÂMICA
Não esqueçamos a etimologia que liga patres e múnus – o serviço do que recebemos de nossos pais. A atenção e o cuidado têm de estar bem presentes, designadamente quando tratamos do património que está ao cuidado de comunidades religiosas. Quando no Conselho da Europa estávamos a escrever o que viria a ser a Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, ainda sob os efeitos da guerra do Kosovo, fomos confrontados com a persistente pergunta: a quem caberia a herança cultural de um templo que havia sido, ao longo da história, igreja cristã ortodoxa, mesquita muçulmana e até sinagoga judaica? O problema era difícil, na prática, mas a nossa reflexão não suscitou grandes dúvidas. Deveríamos considerar esse monumento como património comum, que a todos caberia respeitar e salvaguardar. E essa noção de património cultural comum tornou-se central na nossa Convenção, assinada em 2005, para que a memória e a herança histórica pudessem integrar a noção essencial de uma cultura de paz. Com efeito, as identidades culturais devem ser abertas, capazes de garantir diálogo, respeito, conhecimento e enriquecimento mútuos. E se falamos de património religioso, num contexto de liberdade de consciência e de culto, reportamo-nos a um acervo riquíssimo na Europa e no mundo, que deve ser estudado, protegido e salvaguardado – tendo em mente a memória das diferentes pessoas, comunidades e culturas que fizeram de um culto parte importante da sua vida.
RESPEITARMO-NOS
Não deixar ao abandono o património cultural, significa respeitarmo-nos, defender a memória das raízes e assim protegê-lo – e essa proteção leva a cumprir algumas regras muito simples, mas essenciais. Referimos isto com especial preocupação, uma vez que o património religioso está muitas vezes a cargo de comunidades, que não são constituídas por especialistas – formados para a proteção desses bens de culto e de cultura. Mas se isso assim é, a verdade é que muitas vezes falamos de valores incalculáveis. Eis algumas dessas regras, que urge ter bem presentes: (a) antes do mais, ter os bens com valor patrimonial em segurança; (b) não os deixar sem vigilância, sobretudo quando houver presença de público; (c) só entregar a conservação e o restauro a especialistas com provas dadas; (d) recusar intervenções de amadores ou de meras boas intenções; (e) no caso de dúvida sobre o que fazer, consultar especialistas; (f) sempre que há um bem ou uma peça em perigo deve ser guardada até que haja condições para ser restaurada nas melhores condições; (g) realizar inventários rigorosos, que permitam conhecer o que existe e as suas características fundamentais; (h) realizar fotografias e ter uma identificação precisa das existências. E a estes cuidados temos de juntar uma formação cuidada e cuidadosa. Lembremo-nos que uma medida tão simples como o fecho dos templos religiosos quando não há um vigilante presente, permitiu uma redução drástica dos furtos, assaltos, degradação de bens patrimoniais, tantas vezes por negligência, desatenção ou voluntarismo. Devemos lembrar o projeto português “SOS Azulejo”, que obteve o Grande Prémio da Europa Nostra, que permitiu, graças a medidas de prevenção, uma proteção efetiva de conjuntos com grande valor histórico e artístico. Muitas vezes, mais importante do que mobilizar ou reclamar vultuosos meios financeiros, torna-se essencial cumprir procedimentos simples que evitam perdas irreparáveis. Usar materiais desadequados, recorrer a meios não aconselháveis, utilizar o cimento armado sobre pedra, não usar os materiais originalmente utilizados, – tudo isso pode ter como consequência a destruição irremediável de bens patrimoniais que duraram vários séculos e que mercê de uma intervenção errada podem pura e simplesmente ser destruídos. É mais importante ter um inventário estudado e atualizado do que tentar fazer pseudo-restauros por amadores com consequências irreparáveis. Paralelamente, é importante dar a conhecer o património existente, através de formação e de ações pedagógicas com escolas ou associações da sociedade civil. Segundo o Euro-barómetro, publicado a propósito do Ano Europeu, os portugueses salientam-se pela positiva no reconhecimento da importância e do valor do património, mas também pela negativa ao terem sido dos menos classificados quanto a visitas a museus ou a ações concretas em prol do património cultural.
REALIDADE DE PRESENTE E FUTURO
E não estamos a falar do Património artístico e arquitetónico como realidade do passado. É um património cultural vivo que referimos, desejando que todos se mobilizem para que as raízes se não esqueçam e se tornem fatores de democracia e de desenvolvimento. O património cultural deve, assim, favorecer a paz e a segurança, o desenvolvimento sustentável, o conhecimento, a filantropia e a solidariedade. Estamos, assim, a reportarmo-nos também à criação contemporânea e ao diálogo do passado com o presente. Lembremo-nos em Portugal, por exemplo, os audaciosos projetos das Igrejas de Nossa Senhora de Fátima e do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, ou de Marco de Canavezes, da autoria de Álvaro Siza Vieira – todos com especial valor artístico e patrimonial. Os novos horizontes da criação artística integram-se de pleno no conceito dinâmico de património cultural. O Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), surgido em 1952, com Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas, José Escada, António Freitas Leal, Diogo Lino Pimentel, João de Almeida, Manuel Cargaleiro, Flórido de Vasconcelos, Maria José Mendonça ou Madalena Cabral, entre outros, constituiu um fator extraordinário de “aggiornamento”, que o Concílio Vaticano II veio confirmar. Trata-se da noção dinâmica de Património Cultural, que engloba um essencial e fecundo diálogo entre História e Modernidade.
E OS BENS RELIGIOSOS?
O Conselho Pontifício da Cultura da Santa Sé publicou em dezembro de 2018 as orientações sobre a reutilização dos templos católicos para usos não sagrados. E aí se recomenda que sejam privilegiados novos destinos religiosos, culturais ou caritativos, ficando de fora as utilizações comerciais, designadamente bares e discotecas. No recente Congresso sobre o tema realizado em novembro na cidade de Roma na Pontifícia Universidade Gregoriana foram dados bons exemplos de reutilização de igrejas: para oficinas artísticas, para centros sociais (como nas Basílicas de Santo Eustáquio e de Santa Maria de Trastevere, neste último caso em atividades da Comunidade de Santo Egídio) e até, em situações de menor valor artístico, para habitação. Temos entre nós os exemplos do Museu do Banco de Portugal, na antiga Igreja de S. Julião, da Livraria na Igreja de S. Tiago em Óbidos, do Centro Inter-religioso na Igreja da Misericórdia de Leiria, ou do Museu de Arte Antiga na Capela das Albertas… A preocupação fundamental é a da conservação e da salvaguarda da dignidade de edifícios referenciais do património cultural. Infelizmente na nossa história temos muitos exemplos em que o abandono foi o triste destino. Segundo o Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, importa “haver indicações específicas em matéria de bens culturais, sobre a importância e o valor histórico e artístico do património religioso” – a formação, o inventário, o cuidado, o estudo rigoroso, tudo são aspetos fundamentais a não esquecer. “Algumas formas de degeneração ou profanação nascem (segundo o cardeal Ravasi) por incompetência ou falta de formação. Só uma formação adequada possibilita troca de informações com profissionais especializados”. De facto, “se a sacralidade de um templo lhe é subtraída, isso não quer dizer que ele perde a função simbólica de lugar espiritual e artístico. Por isso o património ‘nobre’ será conservado e tutelado como está, mesmo não destinado ao culto”. Deste modo, deve haver um extremo cuidado (e referimo-nos a lugares sagrados de todas as religiões) na reutilização desses edifícios, em nome da preservação da memória – daí que as comunidades devam ser envolvidas para que a participação e o bom senso prevaleçam e se procurem utilizações adequadas à defesa do património cultural.
UNIDADE NA DIVERSIDADE
Em suma, deixemos uma meditação final sobre o Ano Europeu: os valores, as culturas e as memórias constituem a base de uma Europa que deve caracterizar-se pela “Unidade na Diversidade”, resistindo à fragmentação dos egoísmos e da intolerância. Fora da lógica das identidades fechadas, ou do medo do outro, devemos construir realidades abertas e complexas, que não excluam ninguém. O património cultural liga gerações, suscita complementaridades, cruza influências e assenta na evolução histórica de encontros e desencontros – abrindo caminhos de diálogo e de cooperação entre comunidades, mas também com outras culturas do mundo. Trata-se de uma ponte entre o passado e o futuro, um processo contínuo de criatividade e inovação, que assenta as suas raízes na evolução histórica e suplanta-a em nome de uma cidadania ativa e responsável, do desenvolvimento sustentável e de uma sólida coesão social.
A Nova Agenda Europeia para a Cultura não pode assim ser confundida com uma cornucópia de meios financeiros usados sem critério nem avaliação. Ligue-se o investimento na cultura, educação e ciência com os objetivos de coesão social e de desenvolvimento, envolvendo cidades, campos, litoral, meio ambiente, turismo, sustentabilidade, mudança climática, investigação e inovação, política digital. Estamos a referir a obrigação de maior responsabilidade da Europa e de coerência com a Convenção de Faro do Conselho da Europa, com a Estratégia Europeia para o Património no Século XXI e com a Agenda das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. As instituições europeias deverão reconhecer o património cultural, a Cultura em sentindo amplo, como prioridade estratégica, o que contribuirá para o urgente investimento para o capital humano e cultural e para a promoção dos valores universais da dignidade humana.
Guilherme d’Oliveira Martins
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