UM MESTRE INIGUALÁVEL
Os alunos e os discípulos do Padre Manuel Antunes lembram-se bem do auditório da Faculdade de Letras de Lisboa, completamente cheio, plenamente disponível para o ouvir, como paradigma da sabedoria pura. E isso era admirável, numa escola em que o seu exemplo era uma exceção (graças ao convite de Vitorino Nemésio). A figura frágil do professor contrastava com a segurança no desfiar dos conhecimentos, dos tempos, das épocas, dos autores e das suas obras… Maria de Lourdes Belchior lembrou “este homem de muitos saberes e rigorosos dizeres, que muito viu porque pensou e muito sentiu porque muito sofreu”. A cultura clássica era sobretudo oportunidade para tomar contacto com a essência do conhecimento. A propósito de T. S. Eliot, referia-se a um humanismo nascido “do seio da vida e da cultura dos tempos modernos em crise”, por contraponto à degenerescência em arrivismo e mera expressão quantitativa. E era essa interrogação sobre as raízes e sobre a essência dos problemas que atraía aquela multidão de ouvintes interessados. E assim se entendia como uma atitude humanista pressupunha a compreensão da memória do tempo e uma tomada de consciência da complexidade. E essa memória obrigava a ligar a tradição, enquanto transmissão e herança, com a contemporaneidade que se preocupa com as bases de um futuro de justiça e verdade. Em lugar de uma tradição repetitiva e esclerosada e de uma tradição objeto da curiosidade erudita, tornar-se-ia essencial encarar a tradição como atualização do outrora no agora, “que é diálogo dos vivos com os grandes mortos vivos, que é prolongamento da sua experiencia e que é consciência do seu saber”. Daí a paixão pelos clássicos (“os grandes mortos vivos”), que para Eliot implicaria o culto da maturidade, de uma língua, de uma civilização, de um espírito, implicando, além da perfeição do estilo comum, “a história e a consciência da história, de uma história mais ampla que a simples ‘história paroquial’, na expressão de Toynbee”. E assim o mestre jesuíta recordava os belíssimos versos do poeta anglo-americano, em “Four Quartets”: “O tempo passado e o tempo futuro, / Aquilo que poderia ter sido e aquilo que foi / Tendem para um único fim, que está sempre presente”. Afinal, “ser consciente é não estar no tempo”. Como? O professor fazia compreendê-lo, procurando não se deixar iludir pelo curtíssimo prazo. E assim se entende o apego do Padre M. Antunes à História e ao espírito, que Henri de Lubac, o celebrado teólogo, encontrava na grande mensagem de Orígenes.
ABRIR CAMINHOS NOVOS
Werner Jaeger, autor de Paideia, era referencial. Longe de qualquer repetição, o que o Padre Manuel Antunes fazia era abrir caminhos para a leitura dos clássicos, não apenas os antigos, mas os de todas as épocas, aqueles que se foram singularizando na maturidade do saber, do exemplo, da experiência e da aprendizagem. Não esquecemos o que nos disse sobre o estar especialmente grato ao grande clássico tedesco: “por, através dos seus livros, lhe ter indicado um fio de Ariana no vasto labirinto da cultura grega – a areté como ideal de perfeição humana -, por lhe ter feito ver um Aristóteles mais real e menos abstrato, por lhe ter apontado a direção das fontes do neoplatonismo e por, mais recentemente, o ter orientado no sentido do humanismo cristão dos primeiros séculos…”. E quando tantos estudantes se quotizavam para partilhar e usufruir a leitura de obras que ultrapassavam as suas posses ou quando procuravam o Padre Manuel Antunes na casa da Rua Maestro António Taborda, rodeado de livros de uma biblioteca preciosa, mas nunca distanciado do mundo e da vida, como se ela fosse uma muralha, o que encontravam era abertura, disponibilidade e conhecimento, que lhes permitia melhor descobrir a humanidade. A cultura viva como tradição e diálogo, como especialização e interdisciplinaridade era a marca que distinguia o seu magistério. De facto, importa cuidar do conhecimento e do método. Muito conhecimento se perde na informação e muita sabedoria se perde no conhecimento, na expressão de T. S. Eliot. Sem tradição haveria o risco de infantilismo e do primarismo. Sem diálogo haveria a tentação da sofística labiríntica e obsessiva, do “hermetismo sem janelas, no mutismo sem possibilidades de comunicação”. Sem especialização cair-se-ia nas “generalidades inócuas e nas afirmações sem fundamento”. Sem interdisciplinaridade haveria o risco de as árvores impedirem a visão da floresta.
SEMPRE PEDAGOGO
Como pedagogo que sempre foi – na cátedra universitária ou nas páginas da revista “Brotéria”, com dezenas de pseudónimos – o Padre Manuel Antunes admirava o modo de cultivar o pensamento e a crítica pelos educadores. Admirou, por isso, António Sérgio “um pedagogo que se propôs ensinar a pensar em voz alta, a olhar para os problemas e as coisas com idealidade e lisura, com olhos despreconcebidos e com amor à verdade, que era a sua versão do espinosiano amor intelectualis Dei, por ele com tanto gosto e tanta frequência citado”. D. Luísa Sérgio, mulher do ensaísta, foi o elo que os ligou. Da Travessa do Moinho de Vento à porta da Rua da Lapa, onde o Padre Manuel Antunes celebrava, gerou-se uma amizade. “Entre ele, o ‘agnóstico’ e o sacerdote católico havia muito naturalmente, divergência. Mas a relação foi sempre irénica, nunca polémica: franca, nunca reservada; respeitadora, nunca impositiva”… O jesuíta admirava a “nobre e lucidíssima figura”, até porque “era o contrário do erudito que se afunda em fichas e morre em citações tanto quanto se situava nos antípodas do isolamento ebúrneo”. E quais os seus amores? O amor das ideias, “na sua pureza diáfana e intemporal” e “o amor dessas pedras vivas do edifício social, que são os homens em carne e osso”… Assim, animava-o uma “consciência vigilante, de sentinela nas fronteiras do espírito”… “Por isso, já quase no crepúsculo da vida (revela o jesuíta), vi-o exultar de alegria e júbilo quando João XXIII publicou a Pacem in Terris. Era uma linguagem que ele compreendia e era um conteúdo que ele aceitava”… Sophia de Mello Breyner disse melhor que ninguém: “Havia uma coisa extraordinária no padre Antunes: uma grande ligação entre a cultura e a vida. Eu penso que isso lhe era dado, em grande parte, pelo facto de ser padre. Ele nunca se revelou um homem escolar. Qualquer homem com o grau de erudição e inteligência, a capacidade intelectual que ele tinha, corria sempre o perigo de esterilizar humanamente num pensamento abstrato e muito teórico”. E João Bénard da Costa lembra como o sacerdote acompanhou o grupo de católicos inconformistas (António Alçada Baptista e os amigos) nos tempos do “Pacto”, tendo visto na sua atitude “um sinal de Deus e de caminhos futuros ou de caminhos do futuro, tendo ainda sido um dos membros da comissão portuguesa do Congresso para a Liberdade da Cultura, estando “em combates muito difíceis nos anos 60 e 70, antes dessa Revolução que ele analisou, como mais ninguém, nesse livrinho sublime a que chamou Repensar Portugal””…