A Vida dos Livros

De 1 a 7 de outubro de 2018.

Sob os auspícios da UNESCO, Hélio Jaguaribe, há poucos dias falecido, coordenou um notável quadro panorâmico intitulado “Um Estudo Crítico da História” (Paz e Terra, 2001), publicado em dois volumes. A obra é fundamental e o seu autor dos mais lúcidos pensadores contemporâneos.

FASCINANTE PERSONALIDADE

A personalidade de Hélio Jaguaribe (1923-2018) foi das mais fascinantes que conheci. Encontrei-o primeiro em S. Paulo graças a Álvaro de Vasconcelos e Celso Lafer. O seu entusiasmo era contagiante. Era um apaixonado de Portugal. Conhecia como ninguém a nossa história e admirava profundamente todos quantos contribuíram para a unificação do Brasil. Em serões intermináveis recordava a obra de Pombal e de D. João VI. E costumava contar como se salvou em 1972 a palmeira plantada pelo Príncipe Regente no Jardim Botânico do Rio. Fulminada por um raio, a Palma Mater, Palmeira real, pôde ser substituída pela Palma Filia, que perpetua a memória das raízes. E, no fundo, foi o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves que consumou a independência brasileira em 1815, antes da proclamação do Ipiranga de 1822… Quando falava, transmitia a agudeza da sua inteligência, mas sobretudo uma enorme capacidade de entender a história e a economia como realidades vivas. Com fortes raízes luso-brasileiras, filho de um general brasileiro, distinto cartógrafo, e de uma portuguesa originária de uma família do vinho do Porto, frequentou em Portugal a formação básica e foi Diplomado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro (1946). Em 1953, depois de exercer o jornalismo, esteve entre os fundadores do Ibesp – Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política, que dirigiu. Aí se publicou a importante revista “Cadernos do Nosso Tempo”. Até aos anos sessenta esteve ligado à gestão de empresas familiares. Foi administrador da Companhia de Ferro e Aço de Vitória, até 1964. Hélio pôde, assim, ligar a reflexão política e social a um rigoroso conhecimento da realidade económica. O Ibesp evoluiria, no mandato do Presidente Café Filho, para o Iseb – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, do qual Jaguaribe se afastaria mais tarde por discordar da orientação organizativa, depois de ter sido fortemente incompreendido pela sua crítica ao risco do isolamento em “O Nacionalismo na Atualidade Brasileira” (1958), onde considerava que o protecionismo atrasaria drasticamente o desenvolvimento do país. O golpe militar de 1964, que derrubou o governo de João Goulart, levaria Jaguaribe para um exílio voluntário, nos Estados Unidos, onde ensinou nas Universidades de Harvard, Stanford e MIT, até 1969. Então regressou ao Brasil, já com um grande prestígio intelectual, como diretor do Conjunto Universitário Cândido Mendes e depois no Instituto de Estudos Políticos e Sociais.

O FUTURO DO BRASIL

A sua reflexão sobre o futuro do Brasil revelou-se premonitória e essencial na preparação da democratização do país e das fundamentais reformas económicas de Fernando Henrique Cardoso. Durante a Presidência de José Sarney coordenou o projeto Brasil 2000, cujos resultados foram publicados em 1986 na obra “Brasil –Para um Novo Pacto Social”, dando lugar, dois anos depois, a um novo volume intitulado significativamente “Brasil – Reforma ou Caos”. Em 1988 é um dos fundadores do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), ao lado de Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, Franco Montoro e José Serra. No governo de Fernando Collor aceitou exercer as funções de Secretário da Ciência e Tecnologia, enquanto Celso Lafer era Ministro de Estado e das Relações Exteriores. Em 2005 foi eleito para a cadeira nº 11 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a Celso Furtado. Em reconhecimento do seu contributo científico recebeu os Doutoramentos Honoris Causa pelas Universidades de Mainz (1983), Paraíba (1992) e Buenos Aires (2001). Para Hélio Jaguaribe, a “estrutura profundamente dualista da sociedade brasileira”, relacionada com o passado remoto da escravidão e próximo das tecnologias intensivas de capital, conduziu a moderna sociedade industrial à incapacidade para absorver as grandes massas sociais. Se, desde meados da década de 40 à década de 60, foi possível administrar o país como uma democracia de classe média, as crescentes pressões sociais anunciadas no segundo governo de Getúlio Vargas e agravadas no tempo de Goulart, levaram as classes médias a defender a intervenção militar, que interrompeu o processo democrático. Entretanto, com um novo impulso da industrialização, o país converteu-se na oitava potência industrial do ocidente. Mas industrialização, a urbanização, a generalização do acesso aos meios de comunicação tornaram a partir de fins da década de 70, inviável a permanência da ditadura militar, do mesmo modo que a restauração de uma democracia de classe média. O país exigiu uma democracia social capaz de integrar as massas. Sob a extraordinária direção de Tancredo Neves, foi possível fazer implodir o regime militar, com a ajuda dos mecanismos que montara para se manter. E assim o PMDB converteu-se num amplo conglomerado de tendências diversificadas. E a aliança com setores dissidentes do situacionismo permitiu a Tancredo Neves as condições para a vitória, através do Colégio Eleitoral. A morte de Tancredo, na véspera de tomar posse trouxe para a chefia do Estado o vice-presidente José Sarney, antigo presidente do partido situacionista o que não permitiu, nem ao PMDB nem ao presidente assumir a linha programática definida, apesar da retórica. Mas a situação esgotou-se. Com a aprovação da Nova Constituição, a criação do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, o Brasil tornou-se de todos os países da América Latina aquele em que, segundo Hélio Jaguaribe, melhor garantiu a exigência de um projeto social-democrata, com um acelerado desenvolvimento econômico, apoiado por uma economia de mercado dinâmica e por uma acelerada mudança social, capaz de promover a incorporação das grandes massas em condições superiores de qualidade de vida, de capacitação e de participação.

ESTUDO FUNDAMENTAL

Entre 1994 e 1999, sob os auspícios da UNESCO, Hélio Jaguaribe coordenou um notável estudo panorâmico intitulado “Um Estudo Crítico da História”, publicado em dois volumes, onde o sociólogo, o economista e o historiador se encontram na análise da evolução complexa e incerta do desenvolvimento humano. Aí se apontam duas saídas para a globalização: uma teria a ver com um modelo de integração aberta, de que o Mercosul seria exemplo, e outra teria a ver com as novas possibilidades de inovação científica e tecnológica mercê de “join-ventures inteligentes” de que as regiões emergentes poderiam ser beneficiárias. Infelizmente, a evolução não tem confirmado essa tendência, o que não significa que se tenha perdido a pertinência das análises. As ideologias vivem um compasso de espera, que ninguém sabe quanto vai durar, as guerras religiosas voltaram na Europa nos Balcãs ou na Chechénia e continuam no Médio Oriente, com incidência especial na Palestina, sem esquecer o ataque às torres gémeas de Nova Iorque ou o terrorismo do Daesh. Hélio Jaguaribe manteve-se sempre atento às transformações e às ideias. Nada para si poderia ser aceite sem crítica e debate. Cultivava a ideia de um desenvolvimento orientado e não necessariamente espontâneo. O mercado era um dos elementos, mas não poderia esquecer o método do planeamento bismarckiano… Ah, que saudades desses serões onde a história fluía como a vida – com belo queijo da serra e sempre com um cálice sagrado de Porto.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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