A Vida dos Livros

De 23 a 29 de julho de 2018

Lembramos Nelson Mandela, autor de “Um Longo Caminho para Liberdade” (Planeta, 2012), na passagem do centenário do seu nascimento.

CIRCUNSTÂNCIAS ESPECIAIS

Há circunstâncias históricas aparentemente fortuitas que podem tornar-se decisivas ou pelo menos ter consequências significativas para o curso dos acontecimentos. O que a seguir se lembra é um bom exemplo do que acaba de se dizer. Na biografia de Mário Soares, Nelson Mandela surge ligado a um momento dramático da sua vida, aquando do acidente ocorrido com João Soares e que o levou à África do Sul, depois de ter completado exemplarmente as visitas de Estado à Hungria e à Holanda. O que aconteceu então foi que, apesar das condições muito difíceis que rodearam essa ida a Pretória, Mário Soares pôde contribuir, no plano político, para a evolução sul-africana. Havia que romper com a experiência do apartheid e suscitar uma evolução democrática. O Presidente Botha tinha-se demitido em agosto de 1989 e tinha sido substituído por De Klerk. Logo no Aeroporto, quando o Presidente português chegou, profundamente preocupado com a saúde do filho, Pick Botha convidou Mário Soares para almoçar com o Presidente De Klerk. O momento era muito difícil. A evolução da saúde de João era muito incerta e problemática. No entanto, Soares assim que compreendeu que as coisas poderiam ter um caminho positivo, aceitou o encontro, no qual foi acompanhado por Maria de Jesus e pelos Embaixadores José Cutileiro e João Diogo Nunes Barata. O que sabemos desse encontro permite-nos dizer que foi muito significativo – depressa se tendo passado do formalismo para uma troca de ideias com evidente sentido e consequência políticos. Naturalmente que o ponto de partida das autoridades sul-africanas era muito tímido, receoso e conservador, considerando a própria história complexa da África do Sul. Tudo aponta, porém, para que a experiência do prestigiado político português se tenha revelado fundamental. Mário Soares começou por lembrar: “quando o professor Marcelo Caetano substituiu o ditador Salazar, por incapacidade física deste, prometeu ao País fazer uma liberalização. Mas não teve a coragem de a fazer, ficou-se apenas por superficiais mudanças de nomes. Cinco anos depois foi destituído por uma revolução militar que veio já demasiado tarde para permitir uma transição democrática gradual e controlada, tanto da política interna como da colonial”…

COMPREENDER A DEMOCRACIA

O testemunho é-nos dado pela indispensável biografia de Maria João Avillez. A evolução é conhecida, devendo acrescentar-se o segundo exemplo suscitado por Mário Soares na altura, provinha de Espanha: “o Presidente Adolfo Suárez, em visita a Lisboa assegurou-me (disse M. Soares) estar disposto a fazer a ‘transição democrática’ no seu País. Quando, porém, lhe perguntei se tencionava legalizar o Partido Comunista, respondeu-me que não poderia fazê-lo, porque os militares nunca o autorizariam. Disse a Suárez que, nesse caso, nunca lograria assegurar uma verdadeira transição para a plena democracia. Expliquei-lhe que o Mundo estava à espera de uma rutura com o passado, que passaria simbolicamente pela legalização do Partido Comunista. Sem ela as suas boas intenções nunca ganhariam credibilidade nem consistência. Dias depois, o próprio Presidente A. Suárez teve a amabilidade de me telefonar, dando-me conta de que tomara a resolução – que ia publicamente anunciar – de legalizar o Partido Comunista Espanhol. Percebi que o corte com o passado ia ser consumado e que a Espanha entraria num período novo”. Depois destas duas referências, Mário Soares dirigiu-se a De Klerk e disse-lhe que só se pusesse Nelson Mandela em liberdade e se comprometesse publicamente a renunciar à política do apartheid a Europa, os Estados Unidos e o Mundo acreditariam na vontade de uma verdadeira transição democrática – mas se hesitasse e ficasse pelo meio caminho por falta de coragem, alguém, um dia, mais tarde ou mais cedo, o iria fazer por si. O Presidente sul-africano agradeceu a franqueza e ficou impressionado com os argumentos. Quando Soares deixou a África do Sul, Pik Botha veio despedir-se e trazia uma mensagem do Presidente De Klerk. Haveria uma verdadeira transição, uma rutura, iria ser anunciada a libertação dos presos políticos, sendo Mandela libertado dois ou três dias depois e o apartheid seria banido do País…

UM MOMENTO INESQUECÍVEL

Mário Soares acolheu a mensagem com muita alegria, comprometendo-se a convidar o Presidente De Klerk para visitar Portugal logo que esses objetivos fossem concretizados. E assim o Presidente português considerou o Presidente sul-africano “como um dos mais lúcidos e corajosos do nosso tempo, cuja estatura política não deve ser esquecida quando se enaltece, muito justamente, a figura ímpar e humaníssima de Nelson Mandela”. Continuando a seguir o testemunho de Mário Soares, lembramos o que disse nos momentos imediatos à libertação do resistente sul-africano. “Quando li o discurso proferido por Mandela, ao ser libertado, percebi imediatamente tratar-se de um homem excecionalíssimo de nunca cair na tentação de vingança, tendo passado por perseguições e violências sem guardar o mínimo ressentimento”. Trata-se de seguir o melhor exemplo de quantos no fim da grande guerra, ao saírem dos Campos de Concentração, foram capazes de dizer e de ser coerentes com tal afirmação – que deveriam esquecer a vingança e o ressentimento contra os autores de violência, para impedir a escalada do terror; e que deveriam lembrar onde chegara a barbárie e a cegueira, para que tal não voltasse a acontecer. Esquecer e lembrar são igualmente deveres éticos, para romper com o rancor e o ressentimento e para prevenir o regresso da violência. Em maio de 1994, Mário Soares deslocar-se-ia a Pretória para assistir à tomada de posse do já então Presidente Nelson Mandela e a sua recordação é inesquecível: “Fiquei extremamente impressionado com o discurso que ouvi nessa cerimónia. Proferiu palavras extraordinárias, porque revelaram a sua nobreza de carácter, o seu sentido de dignidade, o seu espírito humanista. Apesar dos longos anos que viveu na prisão, mostrou não sentir qualquer ressentimento, sublinhando que o que mais importava era construir a paz, colaborar no progresso do País, implantar um espírito de tolerância e de sã convivência entre todos. Teve, inclusivamente, palavras de afeto para com dois dos seus carcereiros, que convidara para o banquete oficial, colocando-os ao lado das inúmeras personalidades mundiais presentes”. Mais tarde, Mário Soares integraria o júri que atribuiu a Mandela e a De Klerk o Prémio Houphouet Boigny, tendo ambos sido também laureados com o justíssimo Prémio Nobel da Paz… Nobreza de carácter, sentido de dignidade e espírito humanista – eis o perfil que deve ser realçado, como um modelo para a vida política e cívica. Num tempo em que há tantas nuvens ameaçadoras no horizonte, em especial no tocante ao medo das diferenças e à falta de coragem no sentido de lançar pontes para o diálogo, é indispensável ter bem presente o exemplo de Nelson Mandela, como herói do nosso tempo. Para usar uma expressão cara a Emmanuel Mounier, “o acordar da África Negra” obriga a uma consciência de liberdade, responsabilidade e respeito mútuo, que o exemplo de Mandela bem representa…

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
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