UMA HISTÓRIA NOTÁVEL
A história da cidade de Lisboa reserva-nos tantas vezes boas surpresas no tocante ao modo de aproveitar bem as qualidades naturais de uma das mais belas capitais europeias. Partindo de um núcleo antigo marcado pela Alcáçova e pelos bairros populares da cidade velha, delimitado no século XIV pela cerca fernandina, a cidade foi-se alargando até que o terramoto de 1755 determinou a completa reestruturação do tecido urbano, tendo prevalecido a ideia de manter a Baixa, ainda que beneficiando de um sistema novo, inspirado na experiência de Amesterdão, assente em estacaria de pinho verde. No século XVI a urbe tinha ganho a estrutura ortogonal do Bairro Alto e no século XVIII vai conquistar novos espaços populacionais, na Lapa e no Campo de Ourique. Foi este bairro que acabámos de visitar no último Passeio de Domingo e é sobre ele que hoje falaremos – esclarecendo algumas dúvidas ou imprecisões que ainda existem. Se é uma zona de desenvolvimento relativamente recente da cidade, já que se trata de uma urbanização essencialmente do início do século XX, a verdade é que a sua base foi lançada em pleno século XVIII, a partir de dois núcleos fundamentais – o da nova paróquia de Santa Isabel e o do chamado Campo de Ourique. Se consultarmos mapas anteriores ao terramoto, verificamos que grande parte dos terrenos dessa zona eram ocupados por produção agrícola variada. Tratava-se de chãos rústicos de quintas e olivais, com cultivos vários, além dos barros favoráveis à instalação de olarias e fábricas de telha e tijolo… A rua de Silva Carvalho, que começa nas Amoreiras no Palácio Anadia e termina no limite do antigo Hospital Inglês, divide-se em duas secções que tiveram toponímias diferentes – S. João dos Bem-casados até ao antigo Largo da Páscoa e de S. Luís no troço final. Antes de 1755, a serventia do primeiro troço era rudimentar, marcada por uma ermida, entretanto demolida em 1884, construída em 1581, com fama de favorecimento das curas dos doentes, até pelos bons ares que usufruía, vindos de Monsanto. O pequeno templo antigo situava-se em frente de onde hoje se encontra o Centro Comercial das Amoreiras, sendo da invocação de S. João Baptista e de Nossa Senhora da Boa Sentença. A construção da ermida deveu-se a António Simões, que foi soldado em Alcácer Quibir e esteve na edificação da primitiva igreja da Penha de França (1597). O palácio dos condes de Anadia, bem como as três importantes quintas que lhe correspondem (S. João dos Bem-casados incluindo a casa nobre, Pousos que vai até ao Campo de Ourique e do Pé de Mu e do Fetal que seguia até ao que hoje é o Largo do Rato), tornaram-se propriedade de Francisco Duarte de Almeida e Sousa, depois da insolvência da família Palhares; recebendo Aires de Almeida e Sousa e Sá, irmão de Francisco, em doação, toda a larga propriedade. Em parte do palácio Anadia, morou e faleceu D. Tomás de Mello Breyner, conde de Mafra, médico do rei D. Carlos e avô de Sophia de Mello Breyner. No prédio fronteiro, morou Veva de Lima, filha de Carlos Lima Mayer, um dos “vencidos da vida”, mulher de Ruy Ulrich, conhecido professor de Direito, e mãe da pedagoga Maria Ulrich. Nas Amoreiras, a proximidade das fábricas pombalinas, em especial das sedas, exigia a presença das árvores cujas folhas alimentavam os preciosos bichos-da-seda. Andando pela rua de S. João dos Bem-casados chegamos ao grande prédio de esquina na rua do Sol para a rua do Campo de Ourique, onde esteve instalada a Companhia da Panificação e onde se encontra a Sociedade Filarmónica Alunos de Apolo (fundada por guardas de polícia em 1872). O antigo largo da Páscoa leva-nos aos velhos arruamentos que ligavam a Santa Isabel, ao Rato, a S. Bento e ao Vale do Pereiro – Arrábida e Cabo.
RESVÉS CAMPO DE OURIQUE
Antes de irmos ao Campo de Ourique, cuidemos, porém, um pouco de Santa Isabel. A freguesia foi criada em 1731 pelo primeiro Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida, que começou por estabelecer a sede na Ermida de Santo Ambrósio, já desaparecida. O novo templo foi começado a construir em julho de 1742 e só se concluiu depois do terramoto sem que D. Tomás o visse concluído, apesar do seu apoio com a dádiva das suas pratas pessoais à Irmandade, para que as obras não parassem. No arruamento que liga a igreja paroquial à antiga rua de S. Luís, hoje como o nome de Silva Carvalho, situou-se a última morada de Almeida Garrett, entretanto destruída, escolhida especialmente pelo escritor por se encontrar próximo do cemitério inglês e por dela se avistar o monumento funerário em honra de Henry Fielding (1707-1754), o célebre autor de “Tom Jones”, que morreu inesperadamente numa passagem por Lisboa. Mas regressemos ao início da rua de S. Luís, na saída de uma das travessas do cimo dos quartéis. Estamos no Quartel do Campo de Ourique, construção iniciada em 1758 numa propriedade de Miguel Mendes da Costa e Patrícia Maria – sendo constituída por camaratas, casa da pólvora e logradouros. A instalação foi levada a cabo por D. Lourenço de Lancastre e Noronha, descendente do Conde dos Arcos, 5º Marquês das Minas por casamento. Lembre-se que não havendo serviço militar obrigatório o sistema era profissional e mercenário. Estamos no mais antigo edifício militar de Lisboa construído de raiz, já que os quartéis da Ajuda são posteriores. A praça de armas é imponente e é daqui que parte a organização do Campo de Ourique. De facto, é a partir do Quartel do Marquês das Minas e Conde do Prado que o Conde de Lippe vai proceder a uma construção adequada à modernização do exército português, muito depauperado então. O Conde de Lippe é enviado pelo rei Jorge II de Inglaterra, por iniciativa de Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, com a responsabilidade de Marechal-General do Exército Português. Mercê de tal reorganização, indispensável, o Exército passa de 18 mil para 40 mil homens. Recorde-se que estávamos no termo da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), entre a França e o império Habsburgo, de um lado, a Inglaterra, a Prússia, Hanôver e Portugal, de outro, o que obrigava a um especial esforço de organização e de eficiência – com a presença de mercenários estrangeiros. No Quartel do Campo de Ourique, assim designado, instalar-se-á o regimento Infantaria 4, comandado por Gomes Freire de Andrade (nos anos 1790 a 1807). Um alemão – J.H. Friedrich Link – descreve em 1798 o caminho da Basílica da Estrela até à Parada do Quartel, “deixando o casario para trás de nós, chegamos a uma agradável planície chamada do Campo de Ourique, separada das colinas vizinhas por fundos vales, e utilizada nesta época como local de exercício por um regimento de imigrantes que aí estava alojado em graciosos abarracamentos inicialmente ocupados pelo regimento de Dillon e mais tarde de Montemar”. Acrescente-se que o visitante esclarecia que a Parada também servia para promenade para as classes média e baixa. Depois do terramoto muita gente viera para aqui, pois o local tinha sido poupado às destruições (resvés Campo de Ourique). Esta unidade militar revelar-se-á muito ativa, designadamente na defesa dos ideais da liberdade. Lembrem-se os Motins do Campo de Ourique de 1803. Nas festividades do Corpo de Deus Grosson, ajudante do Conde de Novion, comandante da Guarda Real da Polícia de Lisboa foi preso por Gomes Freire. A prisão ocorreu no Passeio Público e causou um sério conflito entre o Exército e a Guarda. Quando em final de julho o regimento de Infantaria 4 celebrou as festas de Nossa Senhora da Piedade, na Ermida próximo do quartel, patrulhas da Guarda Real lançaram provocações a militares do regimento, tendo havido tiroteio e feridos. Por intervenção do Príncipe Regente, D. João, o Secretário de Estado da Guerra procedeu disciplinarmente contra o comandante do regimento, sendo Gomes Freire preso. De referir que os motins tinham finalidade política. Havia dois partidos que pretendiam influenciar o monarca – Novion e a oficialidade da Guarda Real representavam a sensibilidade francesa e jacobina, e Gomes Freire de Andrade e seus subordinados correspondiam ao partido pró-britânico e maçónico. No final dos acontecimentos, Gomes Freire apenas receberia uma repreensão e Novion seria destituído do comando da Guarda Real…
SAIU DAQUI HERCULANO PARA O EXÍLIO
Merece também referência o golpe de 21 de agosto de 1831, em que interveio Alexandre Herculano e o levaria para o exílio. É um golpe, em que o regimento saiu em defesa da Constituição liberal contra a governação de D. Miguel, por incitamento do lente da Academia de Marinha Albino Francisco de Figueiredo e Almeida. Sobre esta tentativa falhada de golpe Herculano diz: “a infeliz tentativa do 4º Regimento de Infantaria foi tentativa conduzida com tanto valor pelo tenente-coronel Bravo”. Um “agente incógnito” entrou clandestinamente no quartel de sobrecasaca e chapéu redondo. E assim levantou o regimento, que saiu pelo largo da Páscoa, descendo a rua do Sol ao Rato em direção a S. Bento. Contudo a resistência dos guardas de polícia fez-se logo sentir. E ao entrarem na rua do Sol, um mestre de meninos equivocado pela charanga, deu vivas a D. Miguel – e foi varado pelas balas – o que originou grande perturbação. Daí para a frente os efetivos foram-se reduzindo, por fuga de muitos dos soldados, incapazes de resistir. Alexandre Herculano não interveio diretamente no movimento, mas apercebendo-se do fracasso foi para uma nau francesa, “Melpomène”, fiel ao rei Luís Filipe e à monarquia de julho – e daí passou a um paquete inglês que o levou para o exílio até à Mancha. Os resultados do funesto golpe são conhecidos – em frente à porta de armas do quartel no dia 10 de setembro foi fuzilada uma primeira leva de revoltosos – 10 praças e um alferes. A 24 há uma segunda leva de 21 homens, incluindo tambores e outros músicos. Só se salvaria o último contingente de 30 homens, que incluía um tenente e diversos músicos. O resultado final da aventura levou à dissolução do regimento de 4 de Infantaria… Pode dizer-se, pois, que Campo de Ourique nasceu como um campo militar, que se integraria no programa reformista do conde de Lippe. É, assim, o quartel mais antigo de Lisboa. Muito provavelmente, a designação do local deve-se à invocação do milagre de Ourique pelos comandantes militares – invocado nas quinas das armas de Portugal. De facto, o quartel do Campo de Ourique aparece como estruturante na construção do novo bairro – bastando lembrarmo-nos do Jardim da Parada, recordação desse tempo e dessa vocação primordiais. Em memória do inconformismo liberal, o Jardim da Parada alberga a estátua de Maria da Fonte, figura da resistência popular às medidas fiscais e às leis de saúde pública de Costa Cabral (1846). Não se esqueça ainda a intervenção decisiva do regimento de Infantaria 16 na Implantação da República, com o qual contaria Machado Santos na Rotunda – foi na rua Ferreira Borges que teve lugar o primeiro disparo da revolução – , bem como a intervenção importante do Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro, na Primeira Guerra Mundial…
UM PÁTIO DE ARTISTAS FANTÁSTICO
Em suma, se no tempo do terramoto estávamos nos arrabaldes de Lisboa e tudo tendo começado com um campo militar e uma parada para exercícios sob a invocação do milagre de Ourique, em meados do século XIX a futura rua Maria Pia é o início da primeira circular ou circunvalação, construindo-se aqui o Cemitério Ocidental ou dos Prazeres e o acesso da rua Saraiva de Carvalho (1863). O bairro é previsto em 1878 e delineado num plano ortogonal em 1906 por Ressano Garcia. Em 1910 apenas chegava à rua de Tomás da Anunciação, progredindo até 1939 para chegar à rua de Sampaio Bruno. E Campo de Ourique das artes, da ciência e da cultura? Temos tudo! Além de Alexandre Herculano, que daqui saiu para o exílio, Almeida Garrett que teve a sua última morada na rua de Santa Isabel, Gomes Freire de Andrade, comandante do 4 de Infantaria, Guerra Junqueiro, que viveu na rua de S. Luís na quinta da brasileira (D. Ida Rosa Benthim), Fernando Pessoa (na sua casa da rua Coelho da Rocha, de fronte ao seu fiel barbeiro – o senhor Manassés), Bento de Jesus Caraça e Ferreira de Macedo, eminentes matemáticos e pedagogos, fundadores da Universidade Popular Portuguesa na Padaria do Povo, António José Saraiva, Rómulo de Carvalho, Luís Sttau Monteiro, os artistas Cristino da Silva, Leopoldo de Almeida, Cotinelli Telmo, António Lino, Álvaro de Brée, Domingos Rebelo, Helena Almeida, Bárbara Assis Pacheco… Fomos, aliás, recebidos principescamente por Jorge Martins no Pátio dos Artistas – que começou por nos explicar a autoria dos magníficos baixos-relevos aqui colocados graças a Leopoldo de Almeida, da autoria do escultor espanhol Juan de Ávalos y Taborda (1911-2006)… Estes são apenas breves apontamentos. Muito fica por dizer. Propositadamente não há espaço para mil outros protagonistas… Só Fernando Pessoa daria pano para muitas mangas… Hoje foi apenas oportunidade para dizer que a origem do Campo de Ourique está encontrada!