PORTUGAL E A GUERRA DE 14-18
Quando lemos os diferentes relatos e interpretações sobre o desastre de La Lys, ocorrido há exatamente um século, somos obrigados a tirar conclusões equilibradas que integrem as diferentes perspetivas ligadas à participação portuguesa no teatro europeu da guerra de 1914-18 – recusando as visões unilaterais. Antes do mais, esclareça-se que o tema obriga a considerar a intervenção portuguesa na guerra num sentido mais amplo, já que a defesa das fonteiras dos territórios de Angola e Moçambique, vizinhos respetivamente das zonas de domínio alemão, o Sudoeste Africano (Namíbia) e o Tanganica, correspondeu a um envolvimento desde o início das hostilidades Lembrem-se o combate e a derrota de Naulila no sul de Angola, em dezembro de 1914, bem como os episódios de Quionga no norte de Moçambique e a difícil defesa da fronteira, desde outubro de 1914. As tropas portuguesas em África sofreram fortes perdas em vidas humanas devido sobretudo às doenças e foram alvo da desgastante da guerrilha local, alimentada pelos alemães, que procuravam evitar a todo o custo que as tropas deslocadas em África viessem reforçar a Frente Ocidental europeia. Foram razões de política interna que influenciaram a posição portuguesa na guerra europeia. Apesar da cautelosa posição dos ingleses relativamente a uma participação efetiva de tropas portuguesas no teatro de guerra – havendo preferência por outras formas de apoio – o certo é que houve um entendimento no sentido do envio de tropas para a frente europeia. Não se esqueça, porém, que Portugal estava fortemente condicionado em termos financeiros, uma vez que não podia recorrer diretamente ao crédito internacional para pagamento da guerra – em virtude de vigorarem as condições drasticamente penalizadoras do Convénio dos credores externos de 1902. Nesse sentido, o crédito necessário viria a ser conseguido através de uma sub-rogação do governo britânico. Aos ingleses interessava-lhes a aliança portuguesa, mas com a maior eficácia possível – sendo conhecida a fragilidade do nosso exército em formação e meios. Para os britânicos, haveria que ter oficiais preparados e sobretudo abertos a integrar-se no seu próprio aparelho militar. Contudo, depois do acordo sobre a participação portuguesa, tudo se revelaria muito lento e os oficiais portugueses resistiam a uma integração na cadeia de comando britânica. Havia, nas Forças Armadas, a má memória das guerras peninsulares nas quais tinha havido uma clara subalternização dos comandos portugueses. Então ocorre um paradoxo – quando a operacionalidade militar começa a funcionar (ao longo de 1917) e a articulação de comandos tem resultados positivos (com raides portugueses eficazes na frente alemã) começa a crescer o descontentamento no seio do CEP, com a opinião pública portuguesa a opor-se cada vez mais à participação na guerra. E ocorre o golpe de Estado de Sidónio Pais, contrário à presença portuguesa.
O PORQUÊ DE UMA DECISÃO
Não se compreende o resultado de La Lys sem as diversas condicionantes políticas – o Partido Democrático quis reforçar a sua legitimidade ligando-se aos ingleses e aos aliados, mas a opinião pública estava cansada de mortos e de um grande desgaste moral e psicológico. E assim entramos no que viria ser o último ano de guerra. As tropas estão muito desgastadas, uma vez que não se faz o normal “roulement”, não sendo substituídos os efetivos e compensadas as baixas desde outubro (até devido à situação política interna). Ainda por cima vai-lhes caber a defesa das duas primeiras linhas na zona que lhes tinha sido atribuída, normalmente as mais sacrificadas em caso de ofensiva. Ora, os alemães, nesse dia de abril, vão atacar de modo arrasador, aproveitando a noite e o nevoeiro, e usando uma barragem rápida de artilharia que corta as comunicações. O general Gomes da Costa não consegue comunicar com as suas unidades. O CEP é assim paralisado e os alemães dominam o terreno, abrindo brechas e penetrando nas trincheiras. Diz o capitão Francisco José Barros em “Portugueses na Grande Guerra”: “O avanço do inimigo havia-nos transposto em todos os sentidos num formigueiro incomensurável”. Os “boches” cercam as zonas onde estão tropas portuguesas, que não compreendem o que está a passar-se – e daí a onda de pânico. Ao contrário das análises simplistas, o pavor e a retirada devem-se à estratégia usada pela frente de ataque alemã. Assim, os portugueses foram carne para canhão, já que estavam nas primeiras linhas, mas fragilizados. Sem reforços, a situação tornou-se perigosa e insustentável. As baixas portuguesas sofridas nessas poucas horas representam a maioria das perdas do CEP na Frente Ocidental (num total de cerca de 2 mil mortos). É verdade que o “milagre de Tancos” não conseguira preparar adequadamente as forças, mas quando já havia experiência e resultados positivos faltou o apoio da retaguarda. A participação portuguesa por razões políticas contrastou com a luta de sobrevivência de ingleses e franceses.
QUEM ABRIU A BRECHA DECISIVA?
O conhecimento histórico das circunstâncias leva a que não possamos pôr em causa a valentia dos portugueses ou o seu brio. Daí o cuidado que o historiador português teve na leitura das fontes inglesas, imbuídas de um preconceito negativo em relação à atitude das nossas tropas O caso do historiador J. E. Edwards é significativo, segue as teses britânicas, mas não considera as narrativas contraditórias, que merecem leitura cuidada de Filipe Ribeiro de Menezes. No episódio de La Lys o cerco às primeiras linhas portuguesas tornou-se inexorável nas suas consequências – e a falta de comunicações foi decisiva. Os soldados cansados e aturdidos (apanhados no momento em que esperavam regressar a casa) consideraram-se abandonados e traídos e isso explica a derrocada. Não se esqueça os focos de revolta no seio do CEP que se faziam sentir há algum tempo. E não foi só a frente portuguesa que cedeu, a 40ª Divisão inglesa também foi obrigada a recuar, com muitas baixas e capturas. No nosso caso, o general Gomes da Costa confessa ao general Haking que não tem possibilidade de segurar os seus homens na defesa dos rios Lawe e Lys. E este é um dos pontos que leva à crítica dos ingleses relativamente à posição dos nossos soldados. No debate sobre quem cedeu primeiro nos flancos, nem Haking nem Gomes da Costa têm a razão toda. Tudo foi muito confuso. Na linha entre a 2ª Divisão portuguesa e a 40ª Divisão britânica é difícil saber quem cedeu primeiro, enquanto no resto foi o CEP a fraquejar, num recuo desorganizado, mas talvez não tão caótico como os ingleses sugeriram, até pelo número de prisioneiros capturados. A verdade é que se o recuo da 40ª Divisão manteve a coesão, o movimento do CEP não a conseguiu manter, ignorando até a ordem para participar na defesa dos rios… Numa análise cuidada, o autor conclui que a participação portuguesa na Frente Ocidental foi influenciada pelas condições políticas da jovem República. La Lys foi assim um corolário da decisão de levar o CEP para a frente europeia. Houve, porém, excesso de voluntarismo e um cálculo errado sobre a melhor forma de participar ao lado dos aliados. E tudo se agravou quando no país prevaleceu a lógica não intervencionista do Presidente Sidónio Pais. Mas também aqui não deve haver simplificações, sendo certo que La Lys foi o canto do cisne do CEP e o fim de diversas ilusões… Mas é difícil saber o que teria acontecido se La Lys tivesse ocorrido ainda na vigência do governo da União Sagrada. Sobreviveria? O certo é que houve uma confluência de fortes fatores negativos que geraram o desastre… E há muitas lições a tirar, até porque a guerra e as suas consequências marcariam a história portuguesa por várias décadas.