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EVOCAR RUY BELO (1933-1978) NO DIA INTERNACIONAL DA POESIA

Quero só isso nem isso quero  

 

Quero uma mesa e pão sobre essa mesa

na toalha de linho nódoas de vinho

quero só isso nem isso quero

 

Quero a casa de terra à minha volta

cães altos na noite a minha mãe mais nova

quero só isso nem isso quero

 

Quero a casa do forno onde eu me escondia dos relâmpagos

e trovões quando um ferro no cesto garantia uma feliz cria à galinha chocadeira

quero só isso nem isso quero

 

Quero de novo fundir ao lume os soldados de chumbo que no natal me punham no sapatinho

e tirar chouriço e toucinho do guarda-comidas

quero só isso nem isso quero

Quero fazer pequeninos adobes e construir casas pelo quintal

ver chegar o verão e comermos todos lá fora na varanda de tijolo

quero só isso nem isso quero

 

Quero uma aldeia umas pedras um rio

umas quantas mulheres de joelhos brancos esfregando a roupa nas pedras

quero só isso nem isso quero

 

Quero escrever fatais cartas de amor à rapariga dos meus oito anos

rasgar essas cartas deixá-las pra sempre dentro do tronco oco da oliveira

quero só isso nem isso quero

 

Quero umas cabras um pastor rico um pastor pobre

o leite quente na teta o cabrito morto soprado e esfolado

quero só isso nem isso quero

 

Quero a courela as perdizes no ovo a baba do cuco

laranjas de orvalho no ano novo colhidas na árvore

quero só isso nem isso quero

 

Quero dois montes e um paul de malmequeres a cheia na primavera

a asma o ruído dos ralos as pernas sombrias das raparigas

quero só isso nem isso quero

 

Quero os espargos os pinheiros bravos o primeiro pôr-do-sol

as noites de baile no carnaval as bandeiras da safra

quero só isso nem isso quero

 

Quero que voltem os que morreram os que emigraram

matar com eles o bicho com aguardente pela manhã antes da pega

quero só isso nem isso quero

 

Quero ver ao vento o véu das noivas apanhar os confeitos nos casamentos

saber pelos papéis dos registos o tempo da prenhez palavra misteriosa

quero só isso nem isso quero

 

Quero um páteo meu e da sombra e galinhas pedreses e árvores

uma mina de avencas uma horta uma sebe de cana umas casas caídas

quero só isso nem isso quero

 

Quero uma enxada uma gadanha calos nas mãos cuspo nos calos

a cava mais funda da vinha o capataz a fazer o vinho correr

quero só isso nem isso quero

 

Quero ajudar na rega do fim da tarde calcar os buracos das toupeiras

e dirigir com o sacho a água morna nos pés até aos regos do feijão

quero só isso nem isso quero

 

Quero em dezembro o varejo final da azeitona o búzio a tocar

a azeitona a cair dos ramos nos panos de serapilheira

quero só isso nem isso quero

 

Quero o meu pai de chapéu de chuva aberto nos dias de sol

o meu pai de manhãzinha a lavar-se e a explicar-nos latim e história

quero só isso nem isso quero

 

Quero nu em pelota entre todos tomar os banhos no marachão

os ninhos dos pássaros as andorinhas de asas escuras no céu azul

quero só isso nem isso quero

 

Quero o pátio da escola a roda das raparigas a cantar à volta do plátano

o primeiro sonho de amor as primeiras palavras gaguejadas trocadas com uma rapariga

quero só isso nem isso quero

 

Quero as feridas nos pés para poder sair à rua descalço

o pão com conduto entre os meninos pobres no recreio

quero só isso nem isso quero

 

Quero ir ao vale barco a malaquejo à marmeleira

roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso

quero só isso nem isso quero

 

Que quero tanto que quero um mundo ou nem tanto só agora reparo

quero morder para sempre a almofada quente e densa da terra

quero só isso nem isso quero 

 

Ruy Belo, de Toda a Terra (1976), in Obra Poética de Ruy Belo, volume 2, org. Joaquim Manuel Magalhães, Editorial Presença, 2ª edição, Lisboa, 1990, pp. 153-156.

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