A IMPORTÂNCIA DE UMA VIDA
A passagem dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha é justo motivo de lembrança e de estudo sobre a importância da sua vida e obra no nosso panorama literário. Muitos serão, por certo, os motivos para tornar presente o valor literário do poeta – reconhecido como um dos maiores nas literaturas de língua portuguesa -, no entanto vamos centrar-nos numa obra fundamental, na qual se procura reconstituir a relação entre Camilo Pessanha e Ana de Castro Osório, daí se retirando que foi a escritora a responsável decisiva para que a obra do poeta não tenha caído no olvido. E é António Osório, um dos nossos grandes poetas contemporâneos, que reconstitui com enlevo e cuidado histórico, os passos que permitiram trazer até nós o fantástico lugar que o poeta de Clepsidra conquistou. A obra (com uma ilustração de Mário Botas) parte de duas cartas de Camilo Pessanha para Ana de Castro Osório (de 1893 e sem data), uma carta de resposta desta (1893) e ainda uma outra do poeta para Alberto Osório de Castro (1916). E é esta matéria-prima (publicada em primeira mão por Maria José de Lancastre) que permite a António Osório uma cuidada análise e acompanhamento, mercê de ricos testemunhos, de uma extraordinária história de amor. E tudo começa por um desencontro, mas vai evoluindo num sentido fantástico, que leva a que uma relação humana singularíssima, de uma dignidade a toda a prova, termine num exemplar reconhecimento da excecional importância de um autor maior. Como diz Arnaldo Saraiva, se fosse Camilo Pessanha de um outro país, certamente que abundariam traduções e estudos sobre a sua obra. No entanto, estamos longe do justo reconhecimento, apesar de o julgamento de Fernando Pessoa constituir um importante passaporte para o futuro. Tudo começa por um conhecimento pessoal e por uma paixão de Camilo por Ana de Castro Osório, a que esta não pode corresponder. «O amor de Camilo vinha de há anos. Íntimo de Alberto Osório de Castro, seu colega no curso de Direito em Coimbra, publicando crónicas e poemas no jornal de Mangualde O Novo Tempo, que aquele dirigia, Pessanha passava parte das férias na casa de Mangualde do pai do amigo, João Baptista de Castro, que tratava por “primo”, e a quem se dirigia, nas cartas publicadas com toda a estima…». Ana não pode corresponder ao amor de Camilo, por namorar o jornalista e político republicano Paulino de Oliveira, com quem casará em 1898, cinco anos depois da correspondência. A jovem exprime, porém, o desejo «de que Camilo lhe perdoe o desgosto que lhe causa e que seja seu amigo como era de sua irmã, como ela era dele». E se é certo que autoriza Camilo a destruir a sua carta, tal não acontece, prevalecendo uma «atitude de estoica nobreza». Camilo “restitui” a carta de Ana, e esta não rasga as dele, nem as devolve. E assim, chegadas às mãos do poeta António Osório, elas puderam ilustrar esta bela página sobre o melhor que a vida cultural e cívica pode conter – o caráter e a capacidade de reconhecer uma altíssima sensibilidade artística.
UMA PERSONALIDADE RIQUÍSSIMA
Em «O Amor de Camilo Pessanha» o autor faz de Ana de Castro Osório um retrato belíssimo, bem ilustrado pela fotografia jovial dos 19 anos, e mostra-nos o seu lado de escritora que segue as passadas de Garrett e de exemplar pedagoga («a criança não gosta que a não tomem a sério e se lhe contem histórias com o ar de quem diz uma cisa sem importância, e tudo vem a seu tempo»). Em 1911 acompanhou o marido ao Brasil, nomeado cônsul de Portugal em S. Paulo, tendo aí enviuvado em 1914. Em fins de 1915, reata-se o convívio entre Ana e Camilo – que “jantava e seroava em nossa casa invariavelmente duas vezes por semana”, segundo o testemunho de João de Castro Osório. E é este que vai encarregar-se da recolha da poesia: «Comoveu-o ver que um rapaz de dezassete anos lhe pedia para repetir os seus versos de modo a poder escrevê-los, e que, ao fim da noite, lhe mostrava dois ou três dos seus Poemas para ele emendar qualquer erro de interpretação. Prometeu então Camilo Pessanha escrever em cada noite dos nossos serões de família um ou dois dos seus Poemas, até juntar todas as suas obras poéticas». E assim Ana assume o encargo da publicação dos poemas que recolhera «e dos outros que deveria enviar e se esperaram durante quatro anos, sempre em vão». Ana de Castro Osório toma a iniciativa de publicar, em 1920, nas Edições Lusitânia, de que era proprietária, a Clepsidra. E em entrevista a Fernanda de Castro no “Diário de Lisboa” dirá: «De há muito conheço Camilo Pessanha. É um verdadeiro poeta e um verdadeiro sonhador. Mas é também um tímido e um misantropo». Mas não encontrava nele qualquer desejo de glória. Na última carta de Pessanha para Ana, de 3 de junho de 1921, o poeta agradece tudo o que foi feito pela sua obra: «Acredite que foi das mais doces comoções da minha vida e da minha surpresa, ao ver assim evocada e acarinhada diante dos meus olhos a minha pobre alma – há tantos anos morta». Através de seu sobrinho António (seu pajem) é que Ana de Castro Osório reatou o contacto com Camilo Pessanha, numa ida deste ao Hotel Francfort no Rossio, em 1915. No testemunho de António, temos recordação dos grânulos de ópio, que tomava nas deambulações de Lisboa e de como o poeta recitava nas ruas da cidade… «Camilo Pessanha possuía a musicalidade dos seus versos, como em estado natural. Da sua poesia, era ela a música essencial e suplicada. Recitando, dir-se-ia que acordara de uma abstrata melancolia para ser ele o choro, a tristeza, a emotividade e a dor dos seus próprios versos». Mas foi o ópio a danação do poeta. Ele fala mesmo de “tormento dessa horrível angústia fisiológica”. «O demónio da deceção foi realmente o demónio da sua vida, e não apenas o dos seus sonhos em Macau, com Ana próximo de si, em vez da pequenina Águia de Prata, que o enganava (e ele saberia?) e do “desgraçado filho”». José Régio disse que o poeta «da sua derrota fez o seu triunfo»… E António Osório afirma ainda que das histórias de amor contidas na Histórias Maravilhosas de Ana nenhuma é tão impressionante como esta – de que apenas há uma carta encantada e o silêncio sereno da nobreza íntima.
Guilherme d’Oliveira Martins
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