UM OUTRO CAMÕES
Mário Cláudio permitiu-me, entre tantas provas de amizade, conhecer Tiago Veiga e, além do mais, contactar, através dele, com a cultura portuguesa viva – plena de surpresas e de inesperados protagonistas. Quando há uns meses recebi, com amável dedicatória, Os Naufrágios de Camões (D. Quixote, 2017) li-o imediatamente e prometi a mim mesmo aproveitar o mês de Agosto para voltar à prosa, a fim poder gozá-la lentamente, com lápis e caderno de notas, já que me pareceu ser excelente exercício para seguir os passos da complexa investigação imaginada pelo escritor para seu e nosso deleite. Cumpri escrupulosamente o intento. E o livro seguiu-me e seguiram-me Timothy Rassmunsen, neto de Tiago Veiga, Richard Francis Burton, o descobridor das nascentes do Nilo e inesperado camonista, e Ruy, o escrivão de bordo da nau anual da China. Acontece, porém, que para facilitar o exercício, acompanhei com pormenor a preparação da grande viagem deste ano do Centro Nacional de Cultura, “Os Portugueses ao Encontro da sua História” – à Cochinchina e ao Camboja – e, segundo a conjetura romanesca, foi em Phu Quocq, a maior ilha do Vietname, nas proximidades do Mekong, que Luís de Camões deixou o mundo dos vivos… Portanto, tudo se conjugava para tirar o máximo partido desse reencontro com o universo de Tiago Veiga. E, para tornar as coisas mais apetecíveis, uma vez que Mário Cláudio cultiva a necessária ambiguidade entre a ficção e a realidade, foi-me possível, em dado passo do romance, confundir uma diligência real com o meu amigo José Carlos Seabra Pereira com uma consulta literário-filosófica a propósito do clima que perpassa no “Banquete” de Platão e em Camões, confirmando-se que este leu o comentário de Marsílio Ficino sobre a obra do grego. Afinal, estamos sempre a circular da lá para cá e de cá para lá no espelho que nos é dado quando falamos de literatura… E, falando de moderna investigação, está já demonstrado que no Rossio está mesmo D. Pedro IV e não Maximiliano, por causa do colar da Torre e Espada… Enfim, pormenores.
O OUTRO LADO DO SEBASTIANISMO
A experiência de Os Naufrágio de Camões é do puro romance, em que a realidade se mistura com a ficção, mesmo sabendo que estamos no domínio do sonho. E o que encontramos? Uma autêntica revisitação do “sebastianismo” – não só porque o próprio Desejado é enganado no decorrer dos acontecimentos do enredo, mas também porque Camões se vê envolvido na ilusão, do mesmo modo que mais tarde D. Sebastião voltaria falsamente à Ericeira ou a Penamacor. Nesta trama é o próprio épico a ser substituído por um biltre, que se apresenta como se fosse o poeta, podendo mesmo (na conjetura discutível mas estimulante) ser autor da parte final do genial poema. De facto, o enredo parte da hipótese de Camões ter morrido no Oriente. Rassmunsen é claro: “estou em crer que um enorme naco de texto, digamos as últimas estâncias do Canto VIII e os Cantos IX e X, ainda por realizar à data da tragédia marítima, não resultam do punho de Luís de Camões, mas são com toda a verosimilhança da lavra do capitão da nau anual da China”. E o cerne do romance parte da ideia de que o poeta morreu no Camboja. E o capitão, Bartolomeu de Castro, oriundo de Ponte da Barca e amigo de Diogo Bernardes, faz-se passar por Camões. Foi recolhido pelos nativos, rumando a Goa, a Malaca, Chaul e à Ilha de Moçambique, dando continuidade ao poema e mandando-o imprimir em 1572. E assim Os Lusíadas participam, como obra referencial, do drama sebástico. Não é só o rei jovem que desaparece nas areias de Alcácer-Quibir, tornando-se reencarnação do Rei Artur, esperado em manhã de nevoeiro, é também o poema imorredouro que sofre a dúvida sobre a sua plena autoria. Mário Cláudio faz, assim, de Os Naufrágios de Camões uma revisitação do mito das conquistas. E quando seguimos as reflexões e as demonstrações de Rassmunsen o que está em causa? De facto, há uma menor fulgurância da escrita da parte final do poema. “Que as imortalidades, que fingia / A antiguidade, que os ilustres ama…”. Esta vulgaridade choca o neto de Veiga (como Aquilino). Bartolomeu de Castro teria míngua de talento e é exemplo do oportunismo mercenário dos “fumos da Índia”. E o romance dá-nos na primeira parte as deambulações testemunhadas pelo próprio autor… O relato é alucinante, envolvendo diligências científicas e pseudocientíficas, espiritismo, estudos sobre textos em língua tâmil, manuscritos em folha de palmeira, budismo, missionação cristã etc. E o fim do desarvorado Rassmunsen é dramático e patético.
A SOMBRA DE UMA SOMBRA
Morto o neto de Tiago Veiga a dizer “Não sei quem sou, nem onde e quando estou”, o romancista põe-se na peugada de Richard Burton, ao perceber que era este que Timothy perseguia no final de sua vida transtornada. E chegamos a Dinamene, “Aquela cativa, / que me tem cativo…”, o amor derradeiro de Camões. Compreende-se como o grande épico pôde atrair a figura do explorador inglês, herói atual – pela sua personalidade pioneira, aventureira e moderna. Burton admirava Camões, de quem se considerava quase um émulo, pelo carácter corajoso e culto: “desordeiro e erudito, familiar de alcouces, desabrido no trato e tão pronto a acariciar as coxas de uma nativa de África ou da Ásia, como a mimosear um camarada com dois murros aplicados na fronha”. E num sonho mediúnico, Bartolomeu de Castro, capitão da nau anual da China, é desmascarado: “É tempo de pormos ponto final à falcatrua, as derradeiras estâncias do grande poema foram de facto escritas pelo nosso homem”… Tratava-se da sombra de uma sombra… E é o relato de Ruy que nos dá a chave do mistério. “Embarcámos em Macau na São Lourenço, a nau anual da China, por entre uma vozearia de adeuses, de pilhérias e imprecações, e mirados de longe pelos nativos”. Iam conduzir Luís de Camões à prisão de Goa. O poeta era acompanhado da jovem Dinamene e de Jau, escravo de Java. E há o naufrágio. “A última imagem de que me restaria consciência haveria de ser a do cavername que, emergindo como um Adamastor, se erguia à minha frente enquanto a barca se empinava até desaparecer connosco, ou sem nós, nas tenebrosas goelas da tormenta”. Era na Cochinchina e o padre-pregador Gaspar da Cruz ali passara. Dinamene morreu. Camões não teria resistido. Dele rapidamente se perdeu a memória, segundo “a tradicional desmemória lusitana”. Em Lisboa, na Rua Nova apareceu um vate a recitar versos com uma pala a tapar a vista cega… Descobriu Ruy que era o comandante da nau da China que fazia das suas. Até ameaçara com violência Antónia Braz, já muito velha, antiga amásia do épico… Seguiu então os passos do farsante. O próprio rei D. Sebastião seria levado a ouvir o biltre a recitar o poema roubado. Veio o desastre de Marrocos e Filipe I tornou-se rei. As coisas mudaram e misteriosamente lemos em Os Lusíadas: “Este receberá plácido e brando, / no seu regaço o Canto, que molhado / vem do naufrágio triste e miserando, / dos procelosos baixos escapado” (Canto X, CXXVIII)…
Guilherme d’Oliveira Martins
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