A CHAVE DA HISTÓRIA
A célebre conferência de Antero de Quental no Casino Lisbonense em 1871 sobre as causas da decadência do povos peninsulares constitui, muito mais do que uma intervenção circunstancial, uma chave para o tempo que se seguiu e no qual ainda participamos. Não por acaso, Miguel de Unamuno considerou esse momento como o culminar do “século de ouro português”. É certo que há paradoxos e contradições, mas o que aparece com nitidez é a ideia da procura de fatores democráticos, capazes de mobilizar os cidadãos e de fixar as riquezas… Antero falava de três causas da decadência: Trento, o Absolutismo e as Conquistas. O fechamento religioso, a centralização política protecionista e a dispersão de um império dificilmente governável para um país europeu de dimensão média – tudo isso determinou a incapacidade de criar condições económicas e políticas capazes de assegurar um verdadeiro autogoverno democrático. A verdade é que, no final, do século XIX Portugal tornara-se periférico, pobre e mais distante (como não antes) da economia e da cultura europeias. É esse afastamento dramático que constitui pano de fundo do romance Os Maias ou do dilema de Gonçalo Mendes Ramires em A Ilustre Casa de Ramires… E se o batismo de “Vencidos da Vida” teve o seu quê de irónico, como melhor do que ninguém demonstrou Eduardo Lourenço na sua psicanálise mítica do destino português, o certo é que essa marca de decaimento significava a necessidade de partir de uma visão autocrítica para a superação da mediocridade – daí haver, de Alexandre Herculano a Jaime Cortesão, a procura do reencontro com as raízes ancestrais da liberdade e da democracia. O reencontro de Portugal com a democracia e a Europa, no último quartel do século XX e início do século XXI, corresponde assim a uma resposta que confirma que a permanência cultural portuguesa se reforça com a autonomia, com o sentido crítico, a desconstrução dos mitos e com a capacidade inovadora.
OS EFEITOS NEFASTOS DAS CONQUISTAS
Herculano e Coelho da Rocha, na linha de pensamento que Antero seguiria no Casino, puseram-nos de sobreaviso relativamente ao sonho e à dispersão imperiais. “As riquezas do Oriente produziram entre os portugueses os mesmos efeitos que em todos os tempos têm feito sentir aos seus conquistadores” – ensinava o professor de Coimbra. “A antiga singeleza foi substituída por um luxo imoderado; este corrompeu os costumes; e a avidez do ouro ocupou o lugar da virtude e do patriotismo. Por outra parte, as longas e perigosas viagens, a guerra e a colonização despovoaram o reino e abriram um vazio que as riquezas não podiam preencher”. É como se voltássemos a ouvir Gil Vicente, Sá de Miranda ou o incompreendido Camões, pela boca do Velho do Restelo… Ao invés da glorificação do passado está aqui o apelo à fixação… Afinal, “a glória de mandar e a vã cobiça” mostraram-se mais poderosas do que o espírito inovador e do que a capacidade de dar novos mundos ao mundo… Oliveira Martins lembrou: “a bordo fomos tudo; em terra apenas pudemos demonstrar o heroísmo do nosso carácter e a incapacidade do nosso domínio”. A orientação para o mar foi ditada pela situação geográfica e pela tradição comercial – menos por uma vocação imperial, daí que os defensores do regresso à “vida simples” e à “fixação” tenham considerado não haver contradição histórica, mas complementaridade de vocações, enfatizando a fixação como complemento do transporte… E Herculano atribuiu, assim, a falta de esforço, crença e patriotismo na crise dinástica de 1580 aos “hábitos de desenfreio, cobiça, ódio e egoísmo que em cada monção carreávamos do Oriente para a Europa”. E um certo providencialismo decorreria da contradição entre os feitos alcançados e a míngua de efeitos duradouros conseguidos.
ENTRE FIXAÇÃO E TRANSPORTE
António Sérgio deu coerência a uma genealogia nobre, enaltecida por Herculano: desde a política de independência da primeira dinastia, passando pela justificação do Infante D. Pedro na Carta de Bruges, pelo sentido crítico de Sá de Miranda e de Camões, pelos economistas do século XVII, pelos académicos de setecentos e finalmente por Mouzinho da Silveira… Não por acaso, Oliveira Martins considerou modelar o exemplo do Príncipe Perfeito, como delineador de um plano para a Índia, fundado na criação de uma base económica na Península Ibérica. Ainda que concordasse com Herculano e Antero, estudou a hipótese de uma estratégia global assente na articulação entre a inserção europeia e o melhor aproveitamento dos recursos obtidos na circulação mercantil. A criação de uma base peninsular gorou-se, porém, do mesmo modo que as posições dos economistas do século XVII e a tentativa da atração dos capitais dos judeus e cristãos-novos não tiveram consequência em fixação manufatureira – que a descoberta do ouro do Brasil tornou aparentemente dispensável. O fulgor da corte de D. João V correspondeu à passagem das riquezas pelo transporte, e não a uma consolidação económica e cultural. Daí a evolução do século seguinte. Se é verdade que, desde a primeira geração liberal, de Garrett e Herculano, intelectuais e políticos reivindicaram a aproximação à Europa, sem prejuízo da salvaguarda das especificidades nacionais, o certo é que, entre meados e o fim do século XIX, houve uma clara divergência no tocante ao produto per capita, chegando-se à primeira década do século XX com uma distância não alcançada anteriormente. O PNB per capita português que era de 86% da média dos países desenvolvidos, em 1860, passa para 45% no início do século XX. Isto poderá parecer estranho, quando assistimos a uma política de melhoramentos, tantas vezes à custa da dívida pública. No entanto, o desfasamento em relação à Europa deveu-se ao facto de faltar entre nós a fixação, que permitiu no resto da Europa um crescimento muito mais rápido, graças às economias de escala. Tem razão Rui Ramos quando encontra as raízes da condenação dos efeitos das descobertas e das conquistas em Herculano, Antero e Oliveira Martins na ideia de que urgia construir uma “república”, como comunidade de cidadãos patriotas, autónoma e viável, explorando o enraizamento e a “vida simples” baseada nos próprios recursos. Fora da ideia de uma história impossível, como Eduardo Lourenço ensina, trata-se de assumir a herança multifacetada (de Pedro Nunes, Garcia de Orta, Camões, Fernão Mendes Pinto e D. João de Castro) e as suas lições – sendo o regresso ao cais europeu a possibilidade de conciliar a fixação na ampla frente de mar do hemisfério norte com o aproveitamento das virtualidades de um relacionamento global, em geometria variável, designadamente do mundo da língua portuguesa.
Guilherme d’Oliveira Martins