O património cultural não é um conceito fechado e estático. Estamos a falar de monumentos, de sítios, de objetos com valor histórico, de acervos de museus, bibliotecas e arquivos, de tradições, de referências. Reportamo-nos à memória viva, como a língua ou a ciência. Mas, fundamentalmente, tratamos de conhecimentos, de cultura e de humanidade… Ter memória é respeitarmo-nos, é estudar a História e conhecer as raízes. Cuidar do que recebemos é dar atenção, é não deixar ao abandono, é conhecer, estudar, investigar, proteger e conservar. E o certo é que na transição para a era digital ou sob a pressão ambiental e perante o risco da especulação financeira ou urbana, prevenindo e combatendo o tráfico ilícito de bens culturais, devemos promover o património em ligação com a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social. Acresce ainda o contributo económico do património cultural para o desenvolvimento e temos de salientar o papel do património cultural nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à construção da paz com atenção à reconciliação e à recuperação de património destruído. O Ano Europeu do Património Cultural, em 2018, decidido pela União Europeia, visa sensibilizar para a história e os valores europeus e reforçar o sentimento de uma identidade europeia, aberta e inteligente, considerando a preservação do que é próprio em diálogo com as outras culturas.
Na linha da Convenção de Faro, do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea, assinada em outubro de 2005 e entrada em vigor em 2011, a preocupação fundamental é reforçar a noção de património cultural comum e de construir um conceito de responsabilidade partilhada – envolvendo património construído e material, património imaterial e a criação contemporânea. Quantas épocas, artistas, artífices e estilos envolveu a Sé de Braga? E lembremo-nos dos alertas de Garrett contra o desmazelo e a desatenção a que estavam votados os monumentos de Santarém? E como não lembrar como os cidadãos cultos de Évora salvaram as suas muralhas contra a lógica dos patos-bravos? As políticas públicas de cultura modernas devem assentar no cuidado da herança e da memória. De facto, o património cultural não se refere apenas ao passado, mas à permanência de valores comuns, à salvaguarda das diferenças e ao respeito do que é próprio, do que se refere aos outros e do que é herança comum. Como compreenderemos uma civilização, europeia ou outra, sem o estudo e o diálogo entre a tradição e o progresso, sem o entendimento das suas raízes culturais e religiosas? Urge compreender que o que tem mais valor é o que não tem preço. Nem tudo se pode comprar ou vender. Só o cuidado do património cultural permite assumirmos uma cidadania civilizada.
A decisão de considerar o ano de 2018 como consagrado ao Património Cultural não é um ato qualquer, constitui um marco emblemático no momento em que há tantas incertezas e ameaças para um projeto europeu de paz, de hospitalidade, de entreajuda, de desenvolvimento sustentável e de defesa da diversidade cultural. Estão em causa a cidadania livre e responsável; a soberania partilhada; a união de Estados livres e soberanos; a democracia supranacional; a subsidiariedade; a cultura da paz e o desenvolvimento orientado para a dignidade da pessoa humana. A cegueira dos ganhos fáceis, a memória das guerras e da intolerância, a emergência dos seus riscos obrigam-nos a defender uma atitude responsável de prevenção, que só poderá ser duradoura se à dimensão económica soubermos aliar a expressão cultural e cívica, com a qual poderemos tecer a liberdade, a igualdade, a coesão, a justiça distributiva, a equidade inter-geracional, a sustentabilidade e o primado da aprendizagem e do conhecimento. Eis por que este Ano deve constituir-se em desafio para que as políticas culturais articulem as iniciativas do Estado e da sociedade, liguem a proteção do património, a aprendizagem séria, a educação artística, a liberdade criativa e a responsabilidade cívica.
Guilherme d’Oliveira Martins