Quando falamos de património cultural, há a tentação de pensar que falamos de antigualhas, de coisas do passado, irremediavelmente perdidas num canto recôndito da nossa memória. Puro engano! Referimo-nos à memória viva, seja ela referida a monumentos, sítios, tradições, seja constituída por acervos de museus, bibliotecas e arquivos. Mas fundamentalmente tratamos de conhecimentos ou de expressões da criatividade humana… Ter memória é, assim, respeitarmo-nos. Cuidar do que recebemos é dar atenção, é não deixar ao abandono. Por isso, o património cultural que devemos proteger é sinal para que o que tem valor hoje e sempre não seja deixado ao desbarato. Como poderemos preservar o que é novo se não cuidarmos do que é de sempre?
O objetivo do Ano Europeu do Património Cultural (2018) é sensibilizar para a história e os valores europeus e reforçar o sentimento da identidade europeia. Mas, mais do que isso –, é considerar esses valores e essa identidade como realidades abertas ao encontro de outras realidades – sabendo-se os desafios que o património cultural enfrenta e que têm impacto, desde a transição para a era digital até à pressão ambiental e física, sem esquecer a prevenção e o combate do tráfico ilícito de bens culturais. Daí a necessidade de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, de realçar o contributo económico do património cultural para os setores criativos e para o desenvolvimento e de salientar o papel do património cultural nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação pós-conflito e à recuperação de património destruído.
Quando coordenámos a Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea, assinada em Faro a 27 de outubro de 2005, a preocupação fundamental foi a de pensar na noção de património cultural comum e de construir um conceito de responsabilidade partilhada – envolvendo o património construído e material, o património imaterial e a criação contemporânea. As políticas públicas de cultura devem, assim, começar pelo cuidado da herança e da memória. E, de facto, o património cultural não se refere apenas ao passado, mas à permanência de valores comuns, à salvaguarda das diferenças e ao respeito do que é próprio, do que se refere aos outros e do que é herança comum. Como compreenderemos a Europa sem o diálogo entre a tradição e o progresso, sem a compreensão das raízes e sem a complementaridade entre judeus, cristãos e muçulmanos? Urge compreender, afinal, que o que tem mais valor é o que não tem preço. E isso é difícil de entender quando há quem pense que tudo se pode comprar ou vender. Não pode. E é a compreensão do património cultural que nos permite assumir uma cidadania civilizada. Desde o convento de Tibães ou da charola do Convento de Cristo à custódia de Belém, passando pelos vestígios da escrita do Sudoeste, pela pintura atribuída a Nuno Gonçalves, pela poesia trovadoresca, pela lírica e épica de Camões ou pelo Romanceiro recolhido por Garrett, estamos perante símbolos do caminho singularíssimo de um povo, que se afirmou e engrandeceu em contacto e no respeito dos outros.
A decisão da União Europeia de considerar o ano de 2018 como consagrado ao Património Cultural constitui um marco emblemático no momento em que há tantas incertezas e ameaças para um projeto europeu de paz, de hospitalidade, de entreajuda, de desenvolvimento sustentável e de defesa da diversidade cultural. Estão em causa a cidadania livre e responsável; a soberania partilhada; a união de Estados livres e soberanos; a democracia supranacional; a subsidiariedade; e o desenvolvimento orientado para a dignidade humana. Eis por que este Ano Europeu pode e deve constituir-se num desafio às Universidades, às instituições, à sociedade civil e a todos os europeus para que o património cultural seja considerado como fator de mobilização em torno da defesa do que é próprio e do que é comum. A memória das guerras e em especial da segunda guerra mundial obriga-nos a pensar que uma cultura de paz europeia só poderá ser duradoura se à dimensão económica e monetária soubermos aliar a expressão cultural e política, com a qual poderemos tecer a coesão, a justiça distributiva, a equidade inter-geracional e o primado da aprendizagem. Longe das boas intenções que enchem o inferno, precisamos de cuidado e atenção para o que somos, de onde vimos e para onde vamos.