A FORÇA DA CULTURA
A cultura para o nosso autor é, entre muitas outras coisas, tradição, diálogo, especialização e interdisciplinaridade. Sem tradição, há o risco de se cair no infantilismo e no primarismo; sem diálogo, pode cair-se «na sofística mais labiríntica e/ou obsessiva, no hermetismo sem janelas, no mutismo sem possibilidades de comunicação»; sem especialização pode ficar-se em generalidades inócuas ou em afirmações sem fundamento; e sem interdisciplinaridade falta a perspetiva de conjunto e as árvores impedem a visão da floresta… A sociedade contemporânea tem de compreender que a capacidade criadora depende do conhecimento, da visão de conjunto e do entendimento da complexidade. O Padre Manuel Antunes foi um dos professores da Faculdade de Letras de Lisboa mais respeitado, pelo conhecimento, pela sabedoria, pela abertura de espírito e sobretudo pela extraordinária capacidade de tornar próxima a cultura clássica. Nas Memórias, há pouco dadas à estampa, de José Medeiros Ferreira está bem expressa a grande admiração que o intelectual devotava ao grande mestre. No Centro Nacional de Cultura recordamos também a sua influência e o seu magistério, determinantes na compreensão das mudanças necessárias na sociedade portuguesa no sentido da democracia, do pluralismo, em nome da dignidade da pessoa humana. A sua ligação a Sophia de Mello Breyner, aos poetas e escritores que se situavam na esfera de influência de «O Tempo e o Modo» foi muito significativa. O cidadão e o professor de Cultura Clássica complementavam-se, assim, naturalmente – em nome de um humanismo centrado na ideia de aperfeiçoamento constante da pessoa humana e da centralidade da consciência histórica. Como Werner Jaeger, que tanto admirava, pode dizer-se que Manuel Antunes também habitou três pátrias – considerando, além da própria, a Antiguidade e o Cristianismo. E o elo que as une é a filologia, a história e a filosofia. Para o português, talvez mais a literatura. E é assim que lembra a afirmação do mestre alemão: «Todo o humanismo antigo é orientado para a imitação de um modelo. O cristianismo tinha aceitado desde o começo este pensamento, mas referia-o a Cristo. (…) O processo de formação do homem tornou-se o processo de formação de Cristo nos cristãos»… Por ocasião da morte de Gabriel Marcel, em 1973, o pensador afirmava que o filósofo foi dos que melhor soube compreender o perigo da substituição progressiva e total do sagrado pelo profano, bem como das técnicas manipuladoras ou de lavagem aos cérebros de milhões e milhões de seres humanos. E o autor salienta como doía a Marcel a vontade reducionista que via «nos princípios, nos métodos e nas estruturas das ideologias do seu tempo». Hoje, sentimos os efeitos dessa tendência. Eis o que está em causa: o vazio ético e espiritual gera a tentação do fanatismo – em lugar de favorecer o respeito mútuo, o pluralismo e a salvaguarda da liberdade de consciência. Notícias inquietantes enchem os periódicos.
ENTRE A ARBITRARIEDADE E A INTOLERÂNCIA
A indiferença gera a arbitrariedade, a simplificação abre caminho à intolerância. E lembra o jesuíta a emergência não do espírito de verdade, mas do mero espírito de verificação – «espírito não do primado dos fins mas da soberania absoluta dos meios; espírito não de contemplação mas de ação e manipulação das pessoas e das coisas; espírito principalmente hábil, organizativo e tecnocrático que a racionalização conduz e a eficiência inspira». Não que a experiência e o sentido crítico devam ser desvalorizados, mas urge que não se caia na tentação do abstrato. «A abstração, isolando e desvinculando seres e realidades, ergue, vai erguendo, sistemas fechados, que surgindo com a pretensão de encerrarem a totalidade, a mutilam e a deformam»… E qual o resultado? A demonstração de que a indiferença e o fundamentalismo são faces de uma mesma moeda… «O fanatismo, a despersonalização e a massificação, eis os resultados». Gabriel Marcel falava, por isso, dos homens contra o humano. E assim «os extremos do racionalismo e do irracionalismo tocam-se na mesma abolição das diferenças, na mesma promoção do uniforme e do homogéneo, na mesma negação do humano». A desordem que oprime e a ordem que reprime são expressões da mesma violência. E o que presenciamos hoje nesta tremenda escalada do ressentimento e da irracionalidade representa, no fundo, que «violência da paixão e violência da razão são as duas faces da mesma realidade histórica do ideologismo». E nessa palavra se resume a intolerância dos que julgam possuir o exclusivo da verdade e da razão. O Padre Manuel Antunes recorda, a propósito, o seu encontro com Gabriel Marcel: «estou a vê-lo na sua infinita curiosidade por tudo quanto é humano, nobremente humano, de preferência, e se revela através de uma superior forma de cultura: poema, quadro, drama, romance, música, pensamento filosófico e reflexão teológica, principalmente». Como «homo viator» buscava a unidade e a coerência, na «disponibilidade de serviço em prol do humano, na sua busca permanente de mais justiça, de mais verdade e de maior amor entre os homens».
DIVERSOS REGISTOS E SENTIDO CRÍTICO
Os textos que compõem «Occasionalia» homenageiam figuras como, e damos apenas alguns exemplos: Blondel, Guardini, Maritain, Eliot, Graham Greene, Waugh, mas também Tomás More, Pascal e Claudel, Raul Brandão, António Sérgio, José Régio e Vitorino Nemésio; analisam Kafka, Malraux, Gorki, Steinbeck, Gide, Chateaubriand, Toynbee ou Bloch, Heidegger e Marcuse; interrogam Croce, Hegel, Marx, Lenine e Mao. Estamos, afinal, perante a extraordinariamente fecunda produção publicada nas páginas da «Brotéria», onde o autor se desmultiplicou em pseudónimos, reveladores da sua grande versatilidade e de uma singular capacidade para compreender o mundo moderno. E podemos, a propósito do que o autor diz de Pascal, apontar uma síntese, aplicável ao nosso cicerone: «ele continua vivo (…).Partindo da meditação sobre a condição humana, a sua reflexão projetou-se além, muito além de esquemas e de formalismos, de sistemas e de conteúdos que costumam limitar o pensamento de tantos filósofos e cientistas dos tempos modernos. A nós, nesta hora incerta e conturbada, neste momento crucial da história humana – e nossa, principalmente – compete recolher a lição».
Guilherme d’Oliveira Martins
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