Ouvi qualquer coisa, um nome talvez, de estranho e virei-me para trás. Era um dia de muito movimento no Aeroporto de Lisboa. Alguém dizia para o lado:
“- É a primeira vez que faço esta viagem e foi-me muito difícil conseguir as correspondências necessárias. Será indispensável fazer cinco mudanças de voo, e algumas delas são bem problemáticas, pelo pouco tempo de que disporei em terra…”. Ele tinha dito qual o destino, mas o não consegui ouvir… Sei que estava a partir em direção a Londres – onde, em Heathrow, apanharia o segundo da série prevista dos voos de ligação. Sem querer, mantive-me atento à conversa, não por bisbilhotice, mas porque o viajante falava suficientemente alto para que todos o ouvissem. No percurso que fiz até à porta de embarque, os dois interlocutores seguiram os meus passos, suficientemente perto para os ouvir. Percebi desde o início que se trataria de um destino exótico – mas continuei intrigado sobre o nome do lugar… A conversa continuou, notando-se nitidamente que o animado conversador talvez desejasse que todo o mundo soubesse o que iria fazer. Aliás, isso era tanto assim que quase parecia que apressava os seus passos quando eu estugava os meus, como se precisasse da companhia de mais alguém que antecipasse uma espécie de inveja pela aventura que iria empreender.
A partir de certa altura notei a impaciência do companheiro de conversa, não só pela insistência, mas também pelo mistério que rodeava o tema. Por duas vezes, o interlocutor perguntou onde era exatamente o destino, mas como se não ouvisse, o viajante falador continuava a efabulação, a antecipar as vicissitudes que as viagens por certo anunciariam. Até que chegámos ao controlo dos passaportes e deixei que os dois se antecipassem, já roído de curiosidade. Afinal quem seria aquele patusco peregrino, com um destino desconhecido e misterioso. Mas não consegui ler o cartão de embarque, apenas percebi de relance, olhando o passaporte portuguesíssimo, que se chamava Rafael, mas não vi o segundo apelido, apenas o primeiro, que era Vasques. Rafael Vasques e mais qualquer coisa…
Pareceu-me tratar-se de uma palavra com três sílabas, pouco vulgar.
Como tínhamos algum tempo no percurso para as portas de embarque, continuei a tentar ver se percebia mais alguma coisa. O impulso era tal, que estava, no íntimo de mim mesmo algo envergonhado. A certa altura o viajante olhou para mim e quase esboçou um cumprimento, talvez julgasse conhecer-me. Mas depressa desviou o olhar para o outro… Havia momentos em que percebia o que dizia, noutros as palavras tornavam-se inaudíveis…
Era Natal, as luzes de muitas cores enchiam os corredores e as lojas. Havia muita gente, famílias inteiras deslocavam-se nos dois sentidos, iam e vinham. O tal Rafael confessou que iria realizar um sonho, que tinha há muito, desde a adolescência – fazer esta viagem.
O certo é que aproveitava este Natal para se presentear com este destino especial.
Em determinado momento, abriu um saco preto com letras amarelas, no qual guardava um volume antigo com uma encadernação vetusta de pele. Nesse momento, confesso que fiquei algo confuso. Em lugar de um roteiro turístico moderno com belas fotografias, havia um livro velho, do tempo em que não havia destinos exóticos. Aí Rafael confessou ao outro, algo atónito, que tivera lições de latim durante três meses, com um velho professor reformado, para melhor compreender aquele roteiro, escrito em língua latina… “Sabe? – dizia – não tenho memória de alguém, salvo um antepassado ignoto (e esse não conheci, pois que quando nasci já ele tinha morrido há vários séculos), que tenha empreendido esta pequena loucura, e também não conheço vivalma que tenha ido além da leitura deste velho roteiro. O mais curioso (continuou ele) é que, de facto, apenas se conhece o testemunho distante desse avô meu, homem de Franças e Araganças, das Índias e Arábias, aventureiro dos quatro costados… Nada melhor que o Natal para ir ao encontro de uma terra distante, onde talvez o espírito do presépio imperasse sem perder brilho e magia”. Em bom rigor, percebi que o incansável palrador queria libertar-se dos Natais comerciais, das luzes artificiais, já sem sentido, e da corrida mercantil às coisas vis. Ao menos desejaria ir ao encontro de algo onde pudesse haver uma genuína recordação da proximidade, do calor humano, do serviço e da entreajuda, do respeito mútuo e da entrega. Cada vez mais estava curioso. Quem era? Para onde ia? A conversa ia fluindo sem parar. Mas nada resultava de conclusivo. Apenas sabia que iria fazer praticamente uma volta ao mundo, para chegar algures aos antípodas, no hemisfério sul. Sem dúvida seria o sul o destino, até pelas roupas e adereços que levava consigo, pouco compatíveis com a invernia europeia. Mas a teorização sobre a viagem natalícia continuava.
A humanidade precisaria de se encontrar e nada melhor do que aproveitar a oportunidade da celebração da vinda do Menino Deus. “– Este é o melhor momento para esse encontro especial, num lugar especial”. Em certo momento, ele esclarecera, contudo, que não se tratava da Terra Santa… Subitamente, Rafael retirou do saco o volume antigo com encadernação gasta e castanha e abriu-o.
Para minha surpresa, verifiquei que se tratava, nem mais nem menos, do que a “Utopia” de Thomas Morus. Por uns momentos, ele folheou e traduziu uma passagem breve para o seu surpreendido interlocutor: “Está cada um constantemente exposto aos olhares de todos os outros … e vê-se na contingência…, na necessidade de trabalhar e de descansar segundo as leis e costumes do país. Desta vida pura e ativa resulta em tudo a riqueza…, a abundância. O bem-estar difunde-se igualmente por todos os membros desta admirável sociedade, onde a mendicidade e a miséria são monstros ignorados…”. As palavras eram conhecidas e achei-as familiares. Mas nesse momento anunciaram que teríamos de mostrar os cartões de embarque e documentos de identificação. Quando chegou o momento de apresentar o passaporte, então, sim, ouvi claramente o nome de Rafael, que há pouco não entendera: Rafael Vasques Hitlodeu. Como não me lembrara… E fez-se-me luz. Não podia acreditar… Ali estava o neto do velho aventureiro que Thomas Morus conhecera e lhe falara de uma viagem especialmente fantástica. Afinal, existia, tinha vida própria. E quando a hospedeira lhe perguntou qual o seu destino final, ele, plácida e serenamente, disse: vou para Utopia…
Guilherme d’Oliveira Martins