A Vida dos Livros

5 a 11 de setembro de 2016

«José Escada – Eu não evoluo, viajo» é o catálogo de uma exposição antológica que se encontra na Fundação Calouste Gulbenkian, sendo comissariada por Rita Fabiana. Recorde-se que foi o Centro Nacional de Cultura um dos primeiros locais que acolheu a obra deste pintor e artista plástico, como, aliás, também aconteceu com Lourdes de Castro.

REFERÊNCIA FUNDAMENTAL

Se tivesse seis estrelas para atribuir a uma exposição, enquanto iniciativa cultural da maior relevância, dá-las-ia à mostra que se encontra na Fundação Calouste Gulbenkian dedicada a José Escada. Afinal, a apresentação excede todas as expectativas. E assim podemos usufruir de um conjunto diversificado e coerente de obras e referências, que não retrata apenas um autor de exceção, mas que o associa a um período de transição da história portuguesa, em que a liberdade e a democracia se prepararam, numa singular associação de talento, sensibilidade e génio. Sou, no entanto, muito suspeito para me pronunciar com este entusiasmo, por todas as razões conhecidas e mais uma – o ser um admirador confesso de José Escada há muitos anos, que considero um dos grandes artistas europeus da segunda metade do século XX, e por o pintor pertencer ao grupo que o meu querido e saudoso amigo António Alçada Baptista (com o João Bénard da Costa, o Pedro Tamen e tutti quanti) reuniu na «aventura da Moraes», na revista «O Tempo e o Modo» e no Centro Nacional de Cultura. Quando, numa manhã inesquecível, em frente da pintura intitulada “25 de Abril”, a curadora da exposição, Doutora Rita Fabiana, com um zelo e um entusiasmo evidentes e muito especiais, me assinalou o caráter emblemático da obra, que não tem sido suficientemente realçada, ambos nos fixámos na colagem sobre a tela de uma página com um poema de Sophia de Mello Breyner, «Um Dia», que assinala a cumplicidade forte entre a poesia e a pintura – entre dois “irmãos vivos do mar e dos pinhais”. E a respiração suspende-se perante esta ilustração poética de um tempo de esperança, em que o amor por Portugal e pela sua diversidade de cores e de gentes está bem presente (fazendo lembrar o cromatismo de Amadeo de Souza Cardoso): “Um dia mortos gastos voltaremos / a viver livres como os animais / E mesmo tão cansados floriremos / Irmãos vivos do mar e dos pinhais” (“Dia do Mar”, 1947). E nessa reta final da exposição, marcada por uma janela, sentimos o progressivo fechamento e uma tensão, enquanto paradoxo de abertura e de emancipação – o bairro de Santo Amaro em Lisboa, o quarto em casa da mãe, as suas coisas, a sua mão, os cães Strof e Gitano, ele, os amigos, os corpos adormecidos, dobrados, apertados… Passamos das «nossas amarras» para o entusiamo de uma janela. O fechamento exige a libertação. Prenuncia-se uma explosão de energia. A fase das «cordas» e das «amarras» dos anos setenta dá-nos a expressão do pleno domínio do traço, a representar a necessidade da passagem da opressão à libertação…

EU NÃO EVOLUO, VIAJO
Para a última exposição do artista, em 1979, na Galeria São Mamede, “Óleos de Escada”, Sophia, ainda ela, escreve: “Algo aqui lembra a frase de Pessoa ‘eu não evoluo, viajo’”… E compreende-se que essa feliz síntese tenha servido para dar o título a esta reunião de 170 obras, algumas inéditas, outras guardadas em coleções particulares. Reencontrei assim telas que significam tantas amizades antigas – António Alçada, João Bénard, Pedro Tamen, Maria Isabel Bénard da Costa Tamen (ah! Como Lisboa está ali toda, dos beirais às colinas com o casario até ao Tejo), António Sande Lemos… Mas tive a grata surpresa de encontrar muitas obras que não esperava ou que não conhecia… O caminho é intenso e seguro. E os cinco núcleos completam-se naturalmente – «Joie de Vivre», Iluminações, Metamorfoses, As Nossas Amarras e Da minha Janela… Lembrando-nos das obras, fica-nos na retina: Lourdes de Castro na Exposição da Pórtico (1955); Nossa Senhora e o Menino de 1956, que tantas vezes ouvi João Bénard invocar e enaltecer; a fantástica «Joie de Vivre» (1960) – referência emblemática do tempo da bolsa da Gulbenkian em Paris; as pequenas composições de 1965 a guache e tinta-da-china; uma preciosa composição de um rendilhado a tinta-da-china sobre papel vegetal, de 1971; o búzio em recorte e colagem de 1976; a homenagem a Messiaen, do mesmo ano… E não podemos esquecer a ligação fundamental de José Escada ao Movimento de Renovação da Arte Religiosa – de que é exemplo essencial o baldaquino na igreja de Santo António de Moscavide. Lembramo-nos bem de uma tarde extraordinária no Centro Nacional de Cultura em que o Arquiteto João de Almeida nos entusiasmou e comoveu a todos numa sentida e merecidíssima recordação da memória de José Escada, na plena riqueza da sua obra.

CONCHINHAS, PEDRINHAS…
O José Escada era, na definição do António Alçada Baptista, «uma pessoa doce, inteligente, com um grande sentido de humor, limpinho e arrumado». Foi orientador gráfico da Moraes e de «O Tempo e o Modo» e as suas capas desafiam «o grafismo das capas editadas aqui e em qualquer lugar». Era um pintor e um artista completo, no sentido do artesão que exprime o seu enorme talento com a preocupação da perfeição e do bom acabamento. Escrevia o desenho! José-Augusto França fala de maturidade, entre os seus colegas do «KWY», e de uma «delicada solução de uma pintura pessoal numa espécie de “simulação caligráfica”». Quanto às composições feitas de pequenos elementos, disse um dia «ter-se inspirado no último verso de um soneto de Camilo Pessanha “conchinhas, pedrinhas, bocadinhos de osso”». Depois, voltou ao figurativo – paisagens, cabrinhas, cães. Os seus amigos reconheceram uma espécie de regresso à descoberta da contemplação. E assim, depois de uma certa turbulência, transmite-nos serenidade e paz… Ainda o António escreveu: «Não sei se, na minha geração, alguém sofreu com tanta violência o embate entre a lucidez e a clarividência perante o grande projeto que foi prometido ao homem e a mediocridade dos pesos interiores intransponíveis e mais dos bloqueios das circunstâncias que eles semearam à nossa própria volta»… O «regresso do trágico», de que falava Jean-Marie Domenach, era um tema que preocupava o artista. Desenhado em 1961, com um forte sentido dramático, «a expulsão do Paraíso» ilustra um momento autobiográfico em que o pintor se vê lançado num longo período de combate pela sobrevivência. E sente-se no caminho da sua obra «uma relação intensa e constante com o mistério e a transcendência, como ponto de partida para podermos recoser o corpo ao espírito e recomeçar o caminho da nossa unidade só assim reencontrada». E o percurso desenhado por Rita Fabiana faz-nos compreender isso mesmo. Nos últimos encontros que teve com o autor da «Peregrinação Interior», havia uma grande esperança, uma avidez na leitura de Alan Wilson Watts (1915-1973) e pelo diálogo entre o oriente e o ocidente – mantendo, até ao fim, «o olhar, a curiosidade e a inquietação da infância». Esta viagem representa um círculo que se vai abrindo e fechando. Daí a importância da recordação da obra originalíssima de José Escada e desta retrospetiva!

   
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
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