O tema da «essência de Portugal» merece que nos atardemos um pouco na sua consideração. Lembramo-nos dos debates que tiveram lugar na «Raiz e Utopia», no final dos anos setenta e das reflexões de Eduardo Prado Coelho e de António Tabucchi, que recusaram a lógica do circuito fechado de uma história retrospetiva, abrindo perspetivas críticas, em lugar de uma tentação essencialista. Tratava-se de partir da questão que temos connosco mesmos, como Alexandre O’Neill no-lo disse, melhor que ninguém. E lembramo-nos da célebre conferência sobre «os elementos fundamentais da cultura portuguesa», proferida por Jorge Dias em Washington, nos idos de 1950, que começava significativamente por dizer: «no estado atual dos nossos conhecimentos não é possível desenvolver satisfatoriamente o tema que me foi designado neste Colóquio». Mas não esquecemos as considerações então proferidas, cheias de cautelas e interrogações. E vêm-nos à memória as últimas palavras proferidas: «é um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento». Eis o que temos de entender. Não cuidar de mitos enganosos, mas de um sentido crítico relativamente aos problemas. Não cuidar de consensos ilusórios, mas de compromissos sérios, em busca dos interesses e valores comuns. Nos últimos dias, o tema voltou à ribalta e foi já alvo de intervenções nas páginas do «Público», através de João Teixeira Lopes (28.3) e de Miguel Real (31.3), perante o mote dado pelo Presidente da República sobre Portugal: «aqui se criaram e sempre viverão comigo aqueles sentimentos que não sabemos definir, mas que nos ligam a todos os portugueses. Amor à terra, saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade na inclusão, crença em milagres de Ourique, heroísmo nos instantes decisivos». A invocação de memórias de infância leva a uma interrogação que faz sentido – quem somos?
Melhor que ninguém, Eduardo Lourenço tem refletido, ao longo da sua fecunda obra, sobre o excesso e a míngua da identidade nacional e sobre a ciclotimia que nos invade. E o certo é que não devemos iludir-nos com as simplificações. Eis por que motivo a Geração de 1870, de Antero e Eça (menos Vencidos que Vencedores, no largo prazo, como reconheceu Unamuno), mas também António Sérgio, Jaime Cortesão, Raul Proença e António José Saraiva nos ensinaram a denunciar o fatalismo do destino ou do atraso. José Medeiros Ferreira recusava, nessa linha, a lógica das comunidades de destino – fossem nacionais ou outras… Não! Não somos melhores nem piores que outros. Não! Não somos marcados por qualquer messianismo ou escolha providencial. António José Saraiva identificou sebastianismo e loucura. Maria de Lourdes Belchior falou mesmo, em termos insuspeitos, de sermos avessos aos clericalismos. E hoje podemos ler a reflexão completa do Padre António Vieira na sua «Clavis Profetarum», percebendo que o tal Quinto Império não tem a ver com qualquer privilégio histórico, mas com a responsabilidade e o compromisso (aberto e não de uma nação só) e com uma cultura de paz e de dignidade humana. Daí a nossa heterodoxia congénita e o inconformismo. Jorge Dias referiu, por isso, o nosso caráter paradoxal… E Eduardo Lourenço fez uma síntese sobre nós, de modo lapidar: «Saído de ilusões (…), povo missionário de um planeta que se missiona sozinho, confinado no modesto canto de onde saímos para ver e saber que há um só mundo, Portugal está agora em situação de se aceitar tal como foi e é, apenas um povo entre povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa imperfeição»…
Lembramo-nos bem dos amargos de boca sentidos por Alexandre Herculano quando deixou a memória dos lusitanos lá para trás e contestou a historicidade de Ourique, até por se tratar de um mito reinventado nas vésperas da Restauração… Basta lermos o autor de «Eurico» para percebermos que o Portugal histórico foi produto de complexas metamorfoses, que o Estado precedeu a Nação e que foi a vontade do povo e a costa marítima que conformaram a independência política. E o português tornou-se língua de várias culturas e cultura de várias línguas (de Camões a Cesária Évora, de Rosalia de Castro a Mia Couto). Tudo se prende, em suma, à vontade de sermos nós mesmos enquanto quisermos. Eis por que razão o fundamental não será o debate nacional sobre uma qualquer essência, tema irresolúvel, mas sobre os desafios a que temos de responder – Portugal como problema, assente num saber todo de experiências feito… Os fatores democráticos são o que importa aprofundar. É uma Europa aberta e diversa, não fechada nos seus egoísmos, que está em causa. É uma geometria variável de compromissos e cooperações que importa prosseguir. Essencialmente do que se trata é de assumir Portugal como é, que é o modo de considerar uma vocação própria, enquanto encruzilhada de influências (o cadinho ou melting pot da Finisterra, o «continente em miniatura» de que falou Orlando Ribeiro, projetado nas Sete Partidas). O debate urgente não é sobre «uma essência», mas sobre a audácia de ligar liberdade, igualdade, coesão, justiça, confiança, rigor, transparência, aprendizagem e solidariedade. É uma democracia de resultados, da legitimidade do exercício, da responsabilidade e da prestação de contas que devemos aprofundar. Urge, pois, perante as transformações da sociedade global, que possamos assumir a exigência de tornar a informação conhecimento e de transformar o conhecimento em inovação. Se pagamos os nossos impostos temos de cuidar da qualidade acrescentada dos serviços públicos, se ansiamos por mais justiça distributiva temos de combater o desperdício, se precisamos de qualidade de vida, temos de garantir a sobriedade e de preservar a Segurança Social, o Serviço Nacional de Saúde e os seus resultados, bem como melhor Educação e formação para todos, Ciência e Cultura! Se há essência de que deveremos cuidar não é a dos castelos no ar, mas a dos resultados e a do sentido crítico, em nome dos fatores democráticos – «olhando para diante».
in Público | 4 de abril de 2016