A Vida dos Livros

De 21 a 27 de março de 2016

“Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai” (Porto Editora, 2014) de Gonçalo M. Tavares acaba de ser traduzida em Espanha e motiva a capa de um importante periódico do país vizinho.

O ESCRITOR QUE SE ESCONDE

«O que é o passado? Isto: tempo que cada vez ocupa / menos espaço, e tal facto é visível na mala de Bloom. / O presente – agora, este momento -, pelo contrário, ocupa todo o espaço que nos rodeia (…) / Séculos inteiros guardam-se agora em gavetas medíocres» («Uma Viagem à Índia», Canto VIII). Aqui se encontra porventura uma curiosa chave para tentarmos compreender o caráter multifacetado de uma obra cheia de caminhos e lugares, de viagens interiores e exteriores… Há dias, Gonçalo M. Tavares foi capa em «Babelia», o suplemento semanal de «El Pais» dedicado aos livros e às artes. A fotografia foi tirada em Cartagena da Índias, durante o Festival Hay da Colômbia, e o escritor está como que escondido numa das aberturas da antiga muralha. «O Escritor que sabe esconder-se do século XXI». E há um caráter metafórico nessa representação, que quase passa despercebido: o escritor gosta de citar o pensador dinamarquês e de seguir um seu conselho: «Kierkegaard dizia que quem não tivesse um bom esconderijo não teria boa vida». Gonçalo gosta, de facto, de jogar às escondidas com o mundo e a vida. Este destaque é um sinal importante e vale exatamente pelo reconhecimento de um talento especial do escritor a lidar com o tempo. Já referimos o presente, devemos ainda lembrar que faz sentido «o homem ser dotado dessa faculdade de ouvir e ver para trás que se chama memória» (Id. Canto II). O tempo é a matéria-prima que o autor procura descobrir e revelar… E, se virmos bem, em toda a sua obra há um permanente lidar com os diversos tempos que somos levados a compreender. «Um caminho é como uma casa: é necessário abrir a janela, de vez em quando, para que o ar circule. Precisa de ser arejado, o caminho, e os homens que o percorrem são os que executam este ofício. São os homens e as mercadorias que conservam a estrada» (Id. Canto V). E assim viajar tem a ver não apenas com as pessoas mas também com os percursos…

SERES ENIGMÁTICOS…

Alberto Manguel escreve sobre o português e diz que o seu deus tutelar é o Gato Cheshire de Alice no País das Maravilhas: «seres enigmáticos parecem surgir de lado nenhum» e há oscilações entre a razão e a lógica fantástica. Manguel fala da tradução espanhola de «Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai» de Rosa Martinez-Alfaro, na Seix Barral, e diz: «podemos ler as aventuras (ou desventuras) de Hanna como o retrato poético de uma pessoa com trissomia 21. Ou lê-lo como um conto de fadas com um fundo enigmático, os seus prodígios e seus terrores, a sua atmosfera de lúcido pesadelo, a sua rica ambiguidade, a sua memorável epifania». As obras de Gonçalo M. Tavares alimentam esta ambiguidade frutífera – são contos de fadas e muito mais. E no caso da obra a que Manguel se refere dir-se-ia que na célebre viagem à Índia, que é fundamentalmente uma peregrinação mental, já se fala das «palavras que se dizem à menina que se perdeu dos pais» (Canto III) para marcar a distinção das diferentes identidades definidas por fronteiras… Na entrevista que concede ao jornal, a Berna González Harbour, o nosso autor diz-nos que «o fácil é perigoso» e fala-nos do seu processo criativo, em que se detém longamente no ato de depurar o texto, para se ficar pelo essencial. «Para mim a ordem interna é importante no meio do caos» e lembra o exemplo do pai engenheiro na escolha criteriosa dos materiais para a construção. Preocupa-o, porém, essencialmente o mistério do ato criador em ligação com a vida – há «um microsegundo decisivo em que cada um joga como se fosse o sprint dos cem metros». Boa parte da criação começa quando o leitor levanta a cabeça, e começa a imaginar, a associar. E isso deve-se a uma especial intensidade da palavra que se constitui num detonador. «A força da frase depende de concentrar o essencial». Daí a necessidade da depuração e da recusa da adjetivação e da facilidade. E Jorge Luís Borges é chamado a confirmar essa ideia, dizendo que o excesso de adjetivos e de juízos de valor é contraproducente – a parcimónia é essencial.

LER A HUMANIDADE

Preocupado com o essencial, Gonçalo M. Tavares procura ler a humanidade. «As revoluções que pretendem mudar o homem, como o estalinismo, são perigosas e disparatadas porque o homem é um animal muito antigo. Podemos mudar os artefactos técnicos que o rodeiam, mas não o desejo, a violência, a excitação, o organismo, a bondade, o instinto. Uma revolução que quer mudar a vida é outra coisa: mudar as relações, o dinheiro, os aspetos materiais, os objetos». E no decurso do livro «Uma Menina está Perdida…» encontramos a figuração do estranho século XX, nas suas manifestações mais perigosas, como no momento em que os protagonistas são conduzidos a uma cidade de Berlim alegórica na qual o nazismo está representado por um hotel, onde há uma quase total escuridão, sendo a única luz a que ilumina os nomes dos quartos – com a toponímia dos campos de extermínio. Estão perdidos e quando encontram o quarto sentem alívio. A primeira luz parece ser a salvação, mas de facto é a terrível lembrança de Auschwitz. E é preciso haver lucidez, para distinguir o que é terrível. «Muito do que aconteceu no século XX tem a ver com isso. A obscuridade pode ser o desemprego, prolongado, a guerra, a pobreza. Mas não se deve permitir que se prolongue a obscuridade porque pode aparecer uma luz ainda pior». Esse alerta para que haja especial atenção relativamente ao risco do predomínio da barbárie está muito presente em «Uma Viagem à Índia». O Senhor Bloom «quer alcançar a Índia e a sabedoria ao mesmo tempo. E tão longe está desses dois destinos» (Canto I). E Shankra, o homem que encontra na Índia, «parado, não deixava de subir lentamente – como um carvalho que soubesse astronomia e crescesse direcionado para uma estrela particular». Mas Bloom é vulnerável, frágil, precisa de se proteger. «Só a ligeira melancolia permite a existência de sítios recatados». E assim a sua proteção deve-se à «tristeza que havia trazido da Europa – de Lisboa mais precisamente. Sem a ingenuidade trôpega dos felizes, o seu pensamento movia-se» (Canto VIII). Mas, se «procurou o Espírito na viagem à Índia, / encontrou a matéria que já conhecia» (Canto X). Gonçalo M. Tavares tem na sua obra vária diversos exemplos de pôr a tónica na interrogação universalista sobre o nosso sentido de viagem, enquanto partida e chegada – e Eduardo Lourenço compreende-o, melhor que ninguém: «a nossa fabulosa aventura foi sempre sem sujeito como os gregos já sabiam. Mas agora navegamos pela primeira vez e a sério no mar do nosso sublime, ou apenas trivial e universal, anonimato»…

Guilherme d’Oliveira Martins 
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

Subscreva a nossa newsletter