A Vida dos Livros

De 14 a 20 de março de 2016

«O Mistério da Estrada de Sintra – Cartas ao Diário de Notícias» de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão (INCM, 2015) acaba de ser dado à estampa no âmbito da Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, sob a coordenação de Carlos Reis. O presente volume é organizado por Ana Luísa Vilela e apresenta importantes contributos para um melhor conhecimento desta obra de 1870.

UM FOLHETIM A QUATRO MÃOS

Tratando-se de um conjunto de textos escritos a quatro mãos para publicação num jornal diário de grande circulação, como era o «Diário de Notícias», fundado seis anos antes (1864), compreende-se a dificuldade sentida pela organizadora da edição, uma vez que que entre os textos vindos a lume no jornal e a primeira edição em livro (1884-85) há uma distância significativa, já que os autores optaram por introduzir supressões e alterações, que de algum modo reduziram parte da força que o folhetim tinha, especialmente quando publicado num periódico, mercê de um curioso jogo publicitário, em que de início não se diz se realmente se trata de ficção, já que há cartas misteriosas que aparecem e que se anunciam, não se revelando a identidade verdadeira dos seus autores. A direção do jornal, em especial Eduardo Coelho, e os dois autores procuraram, assim, dar um tom de expectativa ao tema da investigação de um caso de polícia – ligando a ficção à realidade. Sob a influência de autores como Dickens, Edgar A. Poe, Conan Doyle, Baudelaire, Collins e Gaboriau – não estamos perante um verdadeiro romance, mas uma narrativa policial em construção, adaptada à natureza de um jornal moderno, que substituíra a lógica da imprensa tradicional, que era essencialmente política, pelo primado noticioso. Basta lembrar-nos da diferente natureza do «Revolução de Setembro», de Rodrigues Sampaio (onde, aliás, foram publicados os primeiros poemas de Fradique Mendes, em 1869). Refira-se, entretanto, que o ano de 1870 era especialmente propício a uma obra destas pela proliferação de acontecimentos e notícias retumbantes da mais variada índole. Estamos no ano da guerra franco-prussiana, da Batalha de Sedan, do início da queda de Napoleão III, da ocupação de Roma pelos italianos, e em Portugal da «Saldanhada», último dos golpes do velho militar e político Marechal Saldanha, desta feita votado ao relativo fracasso, uma vez que o governo perdeu as eleições a seguir realizadas, o que foi exceção no longo período regenerador. O grande tema do momento entre nós era o escândalo ligado ao caso Vieira de Castro, figura bem conhecida e bem relacionada, que matara a sua mulher sob a justificação de adultério. Os condimentos necessários estavam presentes para alimentar a curiosidade dos leitores perante um intrincado caso policial. E Sampaio Bruno elogiou o folhetim, qualificando-o como «uma das mais ousadas provocações que a nossa história já conheceu». Daí o seu aplauso, considerando «o arranque, o ímpeto da improvisação, o seu ar descabelado e maluco». No fundo, era «uma fantasia doida, maravilhosa na execução formal». Pode, assim, dizer-se com rigor que, com a presente edição crítica, o leitor passa a dispor de todos os elementos para conhecer a versão original, que mereceu o elogio de Sampaio Bruno e favores do público, comparando-a com a edição em livro. É certo que os autores ao empreenderem a edição da obra confessaram estarem insatisfeitos com a prosa inserida nas páginas do jornal. Procuraram, por isso, aperfeiçoá-la e apará-la, até pelas discrepâncias dado tratar-se de um escrito a meias. No entanto, por vezes cortaram de mais com sacrifício do ritmo e da originalidade…


UMA EDIÇÃO EM LIVRO, COM RETICÊNCIAS

Recorde-se, porém, a confissão de Ramalho e Eça sobre o texto de 1870: «Há catorze anos, numa noite de verão no Passeio Público, em frente de duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sono ao som de um soluçante pot-pourri de Dois Foscaris, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado na baixa das alturas do Diário de Notícias. (…) Nós enfim éramos novos. O que pensamos hoje do romance que escrevemos há catorze anos ?… Pensamos simplesmente – louvores a Deus! – que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como crítico, deseja, nem ao seu maior inimigo, um livro igual. Porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar»… Compreende-se, sobretudo para Eça (mas também para Ramalho, olhando a sua sombra no tapete), como era difícil assumir, sem tirar nem pôr, uma prosa híbrida e estilisticamente insuficientemente marcada, sobretudo quando as ambições naturalistas e realistas se foram tornando mais evidentes. Falam, por isso, de uma obra «sem plano, sem método, sem escola, sem documentos, sem estilo, recolhidos à simples torre de cristal da Imaginação (…) um em Leiria, outro em Lisboa, cada um (…) com uma resma de papel, a sua alegria e a sua audácia»… Lembremo-nos da teorização de Eça sobre o realismo na conferência que lhe coube no Casino Lisbonense. No «Mistério» há claramente dois registos de escola – um mais romântico (a caminho de uma saída) em Ramalho, outro mais realista em Eça. E Sampaio Bruno tem especial razão quando fala nas «mais ousadas provocações que a nossa história já conheceu». De facto, essa ousadia é indubitavelmente marca de uma nova atitude cultural e literária – enriquecida pela parceria entre dois amigos, com ideias diferentes, mas cuja complementaridade viria a tornar-se real. Não é de mais recordar que na Arca de Água (Porto) Antero de Quental se bateu à espada com Ramalho Ortigão, uma vez que este terçava armas nessa altura pelas hostes de Castilho, alvo dos jovens de Coimbra na polémica do «Bom Sendo e do Bom Gosto».


OS INGREDIENTES DO FOLHETIM

Neste misterioso policial consta uma das primeiras referências a Carlos Fradique Mendes, mais tarde imortalizado como símbolo da geração e do seu tempo. É uma recordação da Condessa… «Ao pé de mim, sentado num sofá com um abandono asiático, estava um homem verdadeiramente original e superior, um nome conhecido – Carlos Fradique Mendes. Passava por ser um excêntrico, mas era realmente um grande espírito. Eu estimava-o, pelo seu caráter impecável, e pela feição violenta, quase cruel, do seu talento. Fora amigo de Carlos Baudelaire e tinha como ele o olhar frio, felino, magnético, inquisitorial. Como Baudelaire, usava a cara toda rapada: e a sua maneira de vestir de uma frescura e de uma graça singular, era como a do poeta seu amigo, quase uma obra de arte, ao mesmo tempo exótica e correta». A identificação é bem conhecida: «E voltando-me para Rytmel: – O sr. Carlos Fradique – disse eu – antigo pirata. Os dois homens apertaram a mão. – A senhora condessa lisonjeia-me extremamente. Eu fui apenas corsário – disse Carlos»… Aí estava o mito! Os ingredientes da narrativa são conhecidos, não é preciso recordá-los. Há um assassinato, uns mascarados que conduzem dois amigos em passeio pacato nos subúrbios de Sintra, ao antro onde está um morto, enganando-os, porque falam de uma mulher que vai dar à luz. O «mascarado alto» singulariza-se na história… Depois de muitas dúvidas, suspeitas e acusações, saber-se-á que o cadáver é do Captain Rytmel e a causa da morte o ciúme. Há suspeitas, mas a Condessa W. é a verdadeira autora do crime. Casada, conhecera o capitão numa viagem para Gibraltar. Tornara-se sua amante, em confronto com uma espanhola, Carmen, que fora sua concubina desde o dia em que a salvara das garras de um tigre na Índia. Mas o surgimento de uma nova pretendente, irlandesa, leva a Condessa a adormecer o capitão, para poder vasculhar à vontade os segredos que esconde nos bolsos. Um pouco de ópio a mais e Rytmel é morto… E tudo termina num pacto de silêncio perante a confissão da Condessa, que abandona o marido e vai para longe do mundo num velho convento carmelita…

Guilherme d’Oliveira Martins 
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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