UM APOIO MILITANTE
Celebrar a poesia é sempre cuidar de algo muito especial para a vida humana, sobretudo quando se trata de alguém que fez das palavras e da ação um todo coerente em nome da liberdade. Roselyne Chenu, a amabilíssima colaboradora de Pierre Emmanuel, esteve em Portugal, para celebrar o centenário desse poeta maior da língua francesa, hoje injustamente esquecido, sobre quem António Alçada Baptista disse que foi o mais persistente e fiel dos intelectuais estrangeiros apoiantes da democracia portuguesa, quando ela não existia e os apoios escasseavam. No Centro Nacional de Cultura, numa sala cheia de «antigos combatentes», Roselyne lembrou, em duas intervenções, o cidadão, o poeta e o militante sempre disponível para apoiar, em nome do espírito europeu, o lançamento das bases da liberdade em Portugal. «Liberdade da Cultura – Preparar o 25 de Abril» (Gradiva, 2015) serviu de pretexto. Com genuíno entusiasmo, foi como se regressássemos a esse tempo de esperança já distante, de 1965. Sentindo a saudade dos que entretanto nos foram deixando (o último dos quais foi Nuno Teotónio Pereira, aqui lembrado na última crónica), todos pudemos compreender que essa memória tem de estar presente e ser recordada. João Salgueiro falou mesmo da necessidade de um novo virar de página, como então foi feito. E lembrou como a formação matemática do poeta Pierre Emmanuel foi um bom ponto de partida, para aliar o rigor e a vontade, o delineamento do futuro e a audácia do presente.
UMA RESISTÊNCIA SERENA E FIRME
Roselyne recordou as vicissitudes policiais desse tempo – de quantos vigiavam os passos daquele grupo que apenas desejava viver em liberdade. Apesar de tudo, não se queixa de ter tido problemas diretos. Sentia-os, rondavam-na por perto, mas julga que a tomaram por inofensiva por ter no seu passaporte a profissão de professora… Porém, foi surpreendente para ela, que vivia num país livre, ouvir António Alçada dizer, em Paris, a Emmanuel, em setembro de 1964, num restaurante em Saint Sulpice, que nunca experimentara a sensação de poder viver a dizer o que bem lhe aprouvesse, numa sociedade pluralista, sem estar constrangido pelo facto de as paredes terem ouvidos. E quantos outros sinais perturbadores puderam ser recordados: a informação policial de um funcionário da Embaixada de Espanha para o Ministro da Informação, Fraga Iribarne, a dizer que o CNC não era de confiança e sofria de esquerdismo, por acolher Dionísio Ridruejo e organizar conferências de José Luís L. Aranguren e de Jesus Aguirre, este então clérigo da paróquia universitária da Universidade Complutense de Madrid («un cura rojo»), o mesmo que viria a casar-se anos mais tarde com a Duquesa de Alba. Também a correspondência tinha vigilância apertada. As cartas vindas de Paris não chegavam aos seus destinatários, razão que levou, quando deram por isso, à utilização de um portador qualificado, Nuno Bragança, então a trabalhar na representação portuguesa na OCDE, para que não houvesse mais dissabores. Em conversa amena na Embaixada de França, graças à hospitalidade e ao apoio do Embaixador Jean-François Blarel, vem à baila o episódio da proibição de Jean-Marie Domenach realizar uma conferência organizada pela Comissão Portuguesa da Associação para a Liberdade da Cultura, em Lisboa. Apesar de haver aparente luz verde de alguém muito bem colocado na máquina do regime, a polícia política revelou-se intransigente e por isso o diretor de «Esprit» ficou detido num hotel, o tempo suficiente, para regressar a França no primeiro voo da manhã seguinte… Razão da intransigência? Os textos de Domenach a favor da autodeterminação em África e talvez ainda a publicação na revista «Esprit» de um texto crítico de José Cardoso Pires…
UMA COINCIDÊNCIA FELIZ
Roselyne Chenu continua entusiasta e ostenta com orgulho na lapela a insígnia da Ordem da Liberdade com que foi agraciada por Jorge Sampaio, por sugestão de João Bénard da Costa. E não deixa de exultar pelo facto de beneficiar de uma bela coincidência nesta sua estada lisboeta, de poder ver e ouvir no Teatro de S. Carlos «Dialogues des Carmélites» de Francis Poulenc, com encenação de Luís Miguel Cintra, bolseiro da Comissão Portuguesa do Congresso para a Liberdade da Cultura, em 1968 para ir a Avinhão, a um dos festivais mais célebres do teatro europeu. É uma ligação extraordinária que tem muito a ver com a sensibilidade e a espiritualidade de Pierre Emmanuel. Georges Bernanos escreveu este texto poucos dias antes de morrer – e os temas do medo e da morte estão bem presentes, em especial no drama sentido pela irmã Blanche… O espetáculo levado à cena revela uma grande coragem de interrogar os limites, de articular o que une as protagonistas da obra e de obrigar a refletir a Europa sobre a defesa de valores comuns, ainda que o seu núcleo seja mínimo. Como em Paul Claudel, ou entre nós em Sophia de Mello Breyner, encontramos em Pierre Emmanuel uma poética de diálogo assente na espiritualidade entre as pessoas e o mundo, entre nós e os outros (a outra metade de nós mesmos), entre o tempo e a vida. Sophia traduziu para «O Tempo e o Modo» o Canto LXVI de Pierre Emmanuel: «O silêncio está em flor / como uma macieira branca sob a lua // Oh lua / quando entre as árvores sobes / tão puro se desenha cada ramo / a eternidade é de repente tão aguda / que choramos de abandono gritamos / de alegria / enquanto a alma evaporada morre / no perfume lunar da noite branca» (Sophia). O tema é significativo e tem muito ver com o caráter persistente e generoso do poeta francês de «La Liberté Guide nos Pas»… Graças à amizade com António Alçada Baptista, e à ação de João Bénard da Costa, Pierre Emmanuel pôde dizer algum tempo depois do início das atividades da Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias: «Há seis meses que existe em Portugal um comité análogo ao espanhol, mas muito mais entusiasta e sequioso de atividades concretas. Esse comité é constituído por escritores e universitários preocupados com a redescoberta do seu país, ou seja, com a desmitificação das teses oficiais». Que melhor elogio? Sobre Pierre Emmanuel, poderemos, assim, dizer algo muito semelhante ao que disse Albert Béguin (sucessor de Mounier à frente de «Esprit»), um amigo de longa data do poeta agora lembrado, sobre Georges Bernanos, cuja espiritualidade muito se aproxima da do nosso poeta: «o homem que todas as manhãs, ao longo de uma vida dolorosa, se comprometeu com o caminho, com a certeza no fundo do seu coração de chegar no dia certo às portas do Reino de Deus».
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença