RELAÇÕES ANTIGAS IMPORTANTES
Poucos sabem que os portugueses tiveram relações antigas com a Rússia, merecendo especial destaque o facto de Pedro, o Grande, conhecer a importância de Portugal, até por ter junto de si dois judeus portugueses que ocuparam importantes cargos na sua corte: António Vieira (iniciador da importante linhagem dos Devier), primeiro chefe de polícia da nova capital da Rússia, São Petersburgo, e João da Costa, culto bobo do czar. Houve, desde cedo, contactos para o estabelecimento de relações comerciais e diplomáticas, mas só com Catarina II, a Grande, em 1789, chegou à capital do império russo o primeiro Embaixador de Portugal, Francisco José Horta Machado, tendo sido designado em 1769 o primeiro cônsul russo em Lisboa. No plano académico (mas também político) António Ribeiro Sanches teve um papel importante, vivendo na corte algum tempo e sendo conselheiro da czarina Catarina. Luísa Todi, a grande cantora lírica portuguesa teve também um papel relevante na mesma corte. Para além destas referências, hás ainda a lembrar a presença de Jaime Batalha Reis como diplomata no momento em que ocorreram os acontecimentos revolucionários de 1917 e a admiração votada por Jaime Magalhães de Lima a Lev Tolstoi, que o levou ao encontro do genial autor russo. A obra de José Milhazes é de leitura obrigatória para quem queira compreender a complexidade da história russa. Aí encontramos na cuidada análise histórica, naturalmente sintética e essencial, a evolução lenta de uma potência que se foi afirmando na encruzilhada entre a Ásia e a Europa. «No século VIII, um grupo de tribos eslavas orientais e fino-úgricas criou o seu Estado na Europa Oriental: a Rus de Kiev». Estamos diante de uma faixa territorial que parte da influência viking e segue até à referência grega e bizantina. É o império romano do Oriente que marca a identidade específica de Kiev – Jaroslav, o Sábio, constrói, por volta do ano 1000, templos de estilo bizantino na cidade de Kiev e os irmãos Cirilo e Metódio, sacerdotes bizantinos do século IX, criaram, a partir do «alfabeto arcaico» da Morávia, o alfabeto glagónico, influenciado pelos alfabetos grego, latino e hebraico – que daria origem ao alfabeto cirílico. A partir da segunda metade do século XI, a Rus de Kiev desintegrou-se em feudos e foi dividida entre os descendentes dos conquistadores, mantendo relações com Bizâncio no campo religioso, já que a Igreja Ortodoxa Russa passou a depender diretamente do Patriarcado de Constantinopla. Note-se que a «Coroa de Monomaco» representava a ligação umbilical entre os Impérios Bizantino e a Rússia. Segundo a lenda, a relíquia da coroa imperial viria do tempo de Nabucodunosor e era constituída por um gorro de pele com diamantes incrustados e uma cruz no cimo, elemento sempre presente na entronização dos czares da Santa Rússia. Moscovo vai surgindo, assim, como terceira Roma.
A DIVISÃO ENTRE OCIDENTE E ORIENTE…
Apesar do cisma entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente ter ocorrido em 1054, as relações entre Kiev e Roma conheceram momentos altos, sobretudo quando a Europa se viu ameaçada pelas Hordas tártaro-mongóis e precisou de pedir auxílio ao monarca russo. O Papa Inocêncio IV chegou a enviar Embaixadores a Novogorod, cidade-Estado onde reinava o príncipe Alexandre Nevski. No entanto, este preferiu fazer um acordo com os tártaros e mongóis, em lugar de lhes declarar guerra, aliado a Roma. Em 1263, Açlexandre Nevski iniciou uma linhagem de duques moscovitas, os quais levarão em 1380 à libertação do poder dos mongóis da Horda de Ouro. Moscovo tornou-se, assim, o centro de unificação da Rússia, por ser um importante território de passagem de rotas comerciais, mas também por estar mais protegida dos ataques tártaro-mongóis. Depois da queda do Império Romano do Oriente e da conquista de Constantinopla, Moscovo torna-se o centro religioso dos territórios russos, o que torna independente a Igreja Ortodoxa russa. Ivan III foi o primeiro monarca russo a intitular-se como Czar; mas foi Ivan IV, o Terrível, o Magnífico, ou o Temível, que primeiro foi entronizado como czar, no século XVI. Então a diplomacia europeia viu o Reino de Moscóvia como um sério aliado contra o avanço turco, sobretudo depois da queda de Bizâncio. Entretanto, Ivan IV anexa ao seu reino o Kanato de Kazan (1552), obriga o Kã da Sibéria a prestar-lhe vassalagem, em 1555, e obtém a rendição de Astracã, além de estabelecer relações privilegiadas com o Norte do Cáucaso e a Geórgia, reino cristão ortodoxo, situado entre os territórios turcos e persas, bem como os reinos e principados da costa do Mar Cáspio e da Ásia Central. Mas Ivan precisa da Europa para desenvolver o comércio no Báltico e romper com o bloqueio da Polónia, Lituânia e Ordem Livónica. Com demasiadas frentes abertas, houve, porém, que estabilizar as relações estratégicas – evitando os confrontos abertos no Báltico e no Cáucaso. O fim do reinado de Ivan, o mandato de Boris Gudonov e as convulsões internas (fome, levantamentos camponeses) fecharam um ciclo que culminou numa fase de decadência – que viria a ser contrariado já na nova dinastia dos Romanov (1612-1917) – quando a Rússia enfrenta três desafios. Trata-se da reconquista dos territórios ucranianos e bielorussos sob domínio das Polónia; a abertura do corredor para o mar Báltico e a luta contra o Império Otomano. Contra o poder da Suécia seria indispensável uma aliança com a Polónia, que, por sua vez, também fortaleceria a posição russa perante a Turquia, ainda que tal significasse a renúncia à Ucrânia.
NOVOS DESAFIOS EUROPEUS…
Será Pedro, o Grande,(1672-1725) a ver-se confrontado com duas tarefas difíceis: o país necessitava de saídas para o mar durante todo o ano, para os dois mares navegáveis que davam acesso à Europa – o Báltico e o Negro. Através das vitórias militares sobre a Suécia na «Guerra do Norte» e com a situação da nova capital, São Petersburgo, ficou resolvida a questão da saída do Báltico. O tema do Mar Negro foi alvo da continuidade de ação das czarinas Isabel Petrovna e Catarina II, tendo esta consolidado a posição russa no Báltico, pela anexação de metade da Polónia e pelo controlo das costas do Mar Negro, em especial da Crimeia. A partir de então, a Rússia passou a ter uma voz decisiva na Europa e ocorreu uma relativa desrussificação das respetivas elites. A História dos séculos XIX e XX é conhecida: Alexandre I pôs em xeque o poder de Napoleão e afirmou um poder europeu respeitado, mas Nicolau I perdeu muito do capital de prestígio adquirido até então; o eslavofilismo e o ocidentalismo defrontaram-se internamente, entre o isolamento e a abertura; a derrota russa na Guerra da Crimeia (1854-56) agravou tudo; a tentativa reformista de Alexandre II, morto por radicais (1881), tentou responder sem sucesso à profunda depressão, não tendo Alexandre III e Nicolau II quaisquer condições para inverter a tendência negativa. O fim da I Grande Guerra, a revolução russa, a vitória sobre Hitler, o início da reconstrução, a guerra fria, a ilusão da Perestroika e a ambiguidade imperial de Putin nos dias de hoje – eis o que obriga a uma séria reflexão. A excursão histórica empreendida pelo autor leva-nos a entender que um futuro europeu de paz e de desenvolvimento exige a compreensão e o conhecimento da situação russa: «a Rússia é essencial para a solução dos mais graves problemas internacionais, sendo um aliado indispensável por exemplo na luta contra o terrorismo islâmico, pois este é também uma séria ameaça para Moscovo. A História mostrou que, não obstante todas as vicissitudes e dificuldades, a Rússia é um país com fortes raízes europeias. Os grandes momentos da sua existência estão ligados ao velho continente, restando apenas continuar à procura do melhor “modus vivendi” entre todos os povos europeus, onde as suas tradições, costumes e direitos sejam respeitados».
Guilherme d’Oliveira Martins
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