A Vida dos Livros

De 2 a 8 de novembro de 2015

«O Livro das Cousas do Oriente, em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente», de Duarte Barbosa (c. 1480-1521), publicado entre 1517-18 constitui um dos melhores exemplos da literatura de viagens do século XVI, merecendo leitura atenta e cuidada.

UM BAIRRO DE PORTUGUESES

Voltamos a Mianmar e à viagem do Centro Nacional de Cultura. Arracão (hoje Rackine) era constituída pela cidade cercada de muralhas em cujo centro se encontrava o Palácio Real. Extramuros havia diversos bairros habitados por estrangeiros, com os seus hábitos, costumes e atividades. Em Daingrih-pet, a sudoeste, habitavam portugueses e indianos católicos, em edificações de pedra e cal. Com o desenvolvimento do bairro foram aparecendo casas em bambu, como as dos autóctones. Estando na margem esquerda do rio, o bairro situava-se numa posição privilegiada, como se verifica pelas gravuras que chegaram até nós, em frente à cidade murada e ao palácio do rei. À comunidade portuguesa era permitido o culto religioso católico, ainda que, com o tempo tivessem ganho hábitos e costumes semelhantes aos da restante população. No bairro dos portugueses, em 1616 integraram-se os cativos de Sundiva, após a derrota do português Sebastião Gonçalves Tibau. Este assenhoreara-se da ilha de Sundiva no estreito de Bengala, depois de uma vida aventurosa de corsário. Natural de Loures, embarcou para a Índia em 1605, desertou do serviço da coroa e foi para Bengala. Foi feitor das embarcações do sal, o grande negócio da região, dedicou-se ao comércio e ao corso. Estabeleceu-se em Djanga, no Arracão, mas foi apanhado pelo massacre que atingiu a povoação, em virtude do mercenário português Filipe de Brito e Nicote ter atacado a região, o que o rei não tolerou, massacrando seis centenas de portugueses e seus apoiantes, a começar pelo filho de Nicote. Tibau escapou com vida e procurou reconquistar a ilha de Sundiva, o que conseguiu por pouco tempo, pelo apoio de forças vindas de Goa, comandadas por D. Francisco de Menezes e depois por D. Luís de Azevedo. Após a retirada das tropas de Goa, Tibau seria vencido, vendo chegar ao fim o seu sonho de ser rei de uma ilha fértil. O Museu Arqueológico de Mrauk-U alberga hoje artefactos, armas e canhões portugueses. Nos subúrbios há uma ruína considerada segundo a tradição como a feitoria dos portugueses.


BAGAN DOS DOIS MIL PAGODES

Depois de Arracão, que tanto diz aos portugueses, o grupo seguiu até Bagan, cidade situada a 150 quilómetros a sudoeste de Mandalay, antiga capital de um importante Império. A maioria dos seus edifícios, sobretudo religiosos, corresponde ao período entre os séculos XI e XIII. Trata-se do Primeiro Império Birmanês, caído (1287) sob o domínio dos mongóis de Kublai Khan, o que levou à perda de importância política, apesar de continuar a ter influência no budismo. Bagan tem cerca de dois mil pagodes, segundo os inventários mais credíveis, podendo no entanto o seu número chegar a três mil, dos treze mil que existiram nos tempos de glória. Hoje pode adivinhar-se o que foi a magnífica cidade, de ouro, pedras preciosas e de uma decoração plena de fulgor, saída de bem fornecidas cornucópias. É uma verdadeira terra de pasmar, junto ao lago que dá um enquadramento sereno e misterioso. Dir-se-ia que a natureza luxuriante é completada pela arquitetura, com a sua originalidade e o encadeamento de formas exóticas e luminosidades. Milhares de stupas elevam-se ao céu e ao anoitecer a cidade aparece recortada na difusa luz do horizonte, como num verdadeiro conto das Mil e Uma Noites. Deambulando entre os templos, fica-se fascinado pela diversidade e pela imaginação: Dhammayangyi é do século XII, como é Gawdapalin; Mahabodhi é do século XIII – mas há dos mais antigos, como o Shwerigon ou o Ananda, do século XI. A lista é extraordinária e há reminiscências da muralha da mais antiga cidade, como a célebre Porta Tharabar, do século IX, única construção que resta desse tempo. Segundo a lenda, a porta é guardada pelo «Senhor da Grande Montanha» e por sua irmã «Face Dourada».


DESPEDIDA DE MIANMAR

A viagem para Mandalay tem paragem em Amarapura e no Lago Taungthaman, onde se encontra a maior ponte de teca do mundo, a celebérrima U Bein – tem 1,2 quilómetros, foi construída cerca de 1850, e hoje apresenta preocupações pelo estado de alguns dos 1086 pilares, que já tiveram de ser reforçados. Recorde-se que a teca é nativa das florestas tropicais de monção do sudoeste asiático. Amarapura significa em sânscrito «Cidade da Imortalidade». Foi uma das capitais da Birmânia durante um período muito curto. Teve a sua glória entre os anos de 1783 e 1857, momento em que Mandalay se tornou a capital da Birmânia. Ainda hoje há reminiscências da atividade artesanal em algodão e seda. Há antigos teares que lembram a tradição de feitura dos tecidos com que são feitas as indumentárias tradicionais, entre as quais os célebres sarongs (lunguis), além da feitura de sinos, tambores, representações de Buda e objetos de culto… Em Amarapura, temos o Pagode de Kyauktawgyi e o Mosteiro Mahagandhayon, que atrai a curiosidade dos forasteiros, quando os monges vêm, a meio da manhã, buscar os seus alimentos, formando uma impressionante fila de hábitos amarelo-alaranjados… A despedida de Mianmar faz-se na antiga capital do último reino independente birmanês (1860-1885), antes da colonização britânica. Mandalay fica nas margens do rio Irrawaiddy e com a conquista britânica de Burma perdeu importância comercial e tornou-se, no essencial, centro da cultura birmanesa, do conhecimento e da espiritualidade budista. Em 1942, a cidade foi invadida e arrasada pelos japoneses. O Palácio Real tornou-se o centro do domínio nipónico, pelo que foi destruído pelo bombardeamento aliado de 1945. Só em 1990 se reconstruiu o imponente palácio, que voltou a ser uma das referências da cidade. Cerca de 30 a 40 por cento da população é de origem chinesa, proveniente de Yunnan. Os pagodes de Kuthodaw e Kyauktawgyi e o templo budista chinês são marcos da cidade. A imponente Catedral do Sagrado Coração (de 1898) é sede do arcebispado católico, de que é titular Monsenhor Nicholas Mang Thang, defensor de um intenso diálogo inter-religioso de cristãos, budistas e muçulmanos. O Padre João Baptista, descendente de portugueses, invoca com emoção essa ancestralidade. Deixando Mianmar, é a vez do Reino de Sião, e lemos Duarte Barbosa no «Livro das Cousas do Oriente»: «Indo mais ao diante, leixando o reino de Pegu ao longo da costa contra Malaca, está um mui grande reino que chamam d’Anseam, de gentios; o rei dele o é também e mui grã senhor; toma desta costa até a outra que de Malaca vai contra a China, de maneira que d’ambalas bandas tem portos de mar; é senhor de muita gente de pé e de cavalo e de muitos alifantes; nom consente que em sua terra os mouros tragam armas». O primeiro destino é Aiútia (Ayuthia), capital do Reino de Sião de 1350 a 1767, com que os portugueses entraram em contacto, logo em 1511, através dos enviados Afonso de Afonso de Albuquerque. O certo é que ainda hoje a ancestral amizade entre Portugal e a Tailândia é motivo de uma ligação muito especial… Mas esses serão contos de próxima crónica…

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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