Senhora Administradora da Fundação Calouste Gulbenkian
Senhor Presidente do Centro Nacional de Cultura
Senhoras e Senhores Membros do Conselho de Administração da Europa Nostra
Caro Jordi Savall
Minhas Senhoras e meus Senhores:
Quando Jordi Savall i Bernardet nasceu em Igualada, em 1941, a Europa estava em plena Segunda Guerra Mundial e a Espanha acabara de mergulhar no pesadelo do franquismo, após a derrota da República democrática por uma rebelião militar de extrema-direita. Devastada pelo conflito, dilacerada por uma fractura ideológica profunda que a repressão contínua do novo regime só vinha agravar, sujeita a um clima generalizado de censura e de perseguição a intelectuais e artistas, muitos deles obrigados ao exílio, a Espanha falangista não era, por certo, um terreno propício ao desenvolvimento das Artes e à educação artística dos seus cidadãos. Nascido numa família humilde dos arredores de Barcelona, tudo parecia, pois, sugerir que Jordi Savall teria as maiores dificuldades em conceber um futuro na Música, qualquer que fosse o campo concreto que procurasse explorar.
Aos quinze anos começou a estudar Violoncelo, tendo acabado por se diplomar na classe deste instrumento do Conservatório de Barcelona, em 1964. Esta sua formação violoncelística assentava exclusivamente, como era típico do ensino musical dos conservatórios da época, nos repertórios clássico e romântico, com exclusão quase absoluta tanto do Barroco e das épocas anteriores como da criação musical do século XX. Mas numa Barcelona que era, por tradição, a mais cosmopolita e a mais liberal das grandes cidades espanholas, emergiam também na cidade os primeiros agrupamentos de Música Medieval e Renascentista, entre os quais se destacava o grupo Ars Musicae, dirigido por Enric Gispert, que alcançaria especial sucesso com as primeiras gravações do cancioneiro polifónico espanhol. Jordi Savall, que entretanto começara a interessar-se pela Viola da Gamba, a par com o prosseguimento dos seus estudos de Violoncelo, seria convidado a colaborar com o grupo, aí travando igualmente conhecimento com uma jovem Soprano, que tal como vários membros da sua família, participava na formação permanente do Ars Musicae – Montserrat Figueras. Em 1968 Jordi e Montserrat casavam e partiam para Basileia, para aí prosseguirem estudos avançados de interpretação de Música Antiga na mais importante escola especializada neste domínio em toda a Europa, a Schola Cantorum Basiliensis, fundada em 1933 pelo milionário da indústria farmacêutica e benemérito musical Paul Sacher.
Na Schola Cantorum Jordi Savall tornou-se aluno do mais influente pioneiro moderno da Viola da Gamba, August Wenzinger, a quem viria a suceder mais tarde, em 1973, como professor deste instrumento na mesma escola. Terminados os seus estudos formais em 1970, iniciaria deste modo uma intensa carreira como gambista, colaborando com nomes destacados como Ton Koopman, Michel Piguet, Trevor Pinnock ou Gustav Leonhardt. Só que o repertório então conhecido da Viola de Gamba era apesar de tudo ainda relativamente restrito: as partes solísticas obrigadas das Paixões e de uma ou outra cantata de Bach, alguma música de câmara do século XVII, o baixo contínuo em obras para pequenos conjuntos vocais e instrumentais em que essa parte se revestisse de particular dificuldade técnica. Jordi Savall, contudo, tomara desde os primórdios da sua formação especializada em Interpretação de Música Antiga contacto com as fontes originais do repertório francês para Viola da Gamba dos séculos XVII e XVIII, e amadurecera gradualmente a sua compreensão desta Música considerada até então como pouco mais do que uma mera curiosidade musicológica.
Foi um trabalho lento de reflexão e de conquista gradual do terreno de estudo. Tratava-se de esquecer a herança anterior do Violoncelo, com todo o universo estilístico romântico que lhe estava automaticamente associado, de adquirir um domínio gradual das possibilidades técnicas e expressivas do novo instrumento, e de decifrar as instruções, muitas vezes obscuras e enigmáticas, dos manuais pedagógicos e das edições originais do repertório para Viola da Gamba seiscentista e setecentista. Os resultados graduais deste trabalho foram gravações magníficas das obras do Senhor de Machy, dos Sainte-Colombe Pai e Filho, de Marin Marais, de François Couperin, de Antoine Forqueray, de Caix d’Herveloix, que constituíam uma verdadeira revelação, despertando o público mais alargado da Música erudita actual para a riqueza desta literatura gambística até então esquecida. Como Jordi Savall gosta de contar, foi quando seleccionou e interpretou a Música do filme Tous les matins du monde, de Alain Corneau, em 1991, que o impacte desta revitalização junto da opinião pública começou a dar sinais de sucesso evidente. Depois de duas décadas em que em todos os aeroportos por onde passava com a Viola lhe pediam instruções sobre o que fazer com aquilo a que chamavam automaticamente o seu “Violoncelo” houve um dia em que no balcão de check in lhe perguntaram de forma muito natural se queria despachar a sua Viola da Gamba no porão ou levá-la na cabina. A aposta estava ganha.
Mas Savall tinha também noção, pela sua experiência anterior, da riqueza da Música espanhola dos séculos XV a XVII, e interessava-se igualmente de forma crescente pelo repertório italiano do mesmo período, que tal como a literatura peninsular não tinha até então sido devidamente explorado pelos grandes pioneiros da abordagem histórica da Música Antiga. Em 1974 constituía com Montserrat Figueras, Ton Koopman, Hopkinson Smith e Lorenzo Alpert o grupo Hesperion XX, dedicado precisamente às Músicas Antigas das Penínsulas ibérica e itálica, procurando combinar a investigação sobre fontes e instrumentos originais com a pesquisa das tradições musicais vivas das culturas rurais da Europa mediterrânica. Surgiram os primeiros discos neste domínio, com um repertório que ia das canções trovadorescas medievais aos cancioneiros polifónicos renascentistas e aos tonos humanos e madrigais do Barroco. Era uma bomba de vitalidade que levava ao rubro os públicos de todo o Mundo e que desencadearia uma verdadeira revolução em todo o movimento de redescoberta da Música Antiga Ibérica das quatro décadas subsequentes.
Foi nesta fase, em 1979, que Jordi e Montserrat vieram pela primeira vez a Portugal, para lecionarem nas Semanas de Música Antiga Ibérica que os saudosos Maria Fernanda Cidrais Rodrigues e Joaquim Simões da Hora, juntamente com Manuel Morais e comigo próprio, começámos então a organizar anualmente. Vieram depois, aqui na Fundação Gulbenkian, as Jornadas de Música Antiga, em que Jordi e os seus agrupamentos depressa se tornaram num pilar da programação deste evento, ano após ano. Para os jovens intérpretes portugueses interessados na Música Antiga foi um processo de descoberta de novos repertórios e novas abordagens, estimulando muitos deles a prosseguirem mais tarde estudos de pós-graduação neste domínio em escolas especializadas no estrangeiro e a regressarem para integrarem a massa crítica dos melhores profissionais portugueses deste sector. Para o nosso público melómano em geral este contacto reincidente tornou-se num ritual indispensável, e numa relação verdadeiramente amorosa, pela continuidade e pela intensidade, que até hoje se mantém no quadro da programação musical da Fundação.
Em 1987, Jordi Savall decidiu dar um passo radical na sua carreira, abandonando a cátedra da Schola Cantorum Basiliensis e regressando à Catalunha para se estabelecer em Bellaterra, nos arredores de Barcelona, para fundar, em paralelo ao Hesperion XX, um grupo de polifonia vocal formado maioritariamente por músicos espanhóis, que criasse uma base vocal para alargar a sua abordagem do repertório espanhol, a Capella Reial de Catalunya. As celebrações monumentais do Quinto Centenário da chegada de Colombo às Américas criaram condições de patrocínio para a gravação e lançamento de um grande conjunto de obras dos cancioneiros peninsulares do século XVI, bem como de obras sacras dos maiores polifonistas espanhóis da Contra-Reforma (Morales, Guerrero, Victoria, Cererols). Era uma abordagem em diversos aspectos completamente nova, permitindo combinações experimentais de vozes e instrumentos que pouco a pouco mudavam a nossa compreensão deste repertório tantas vezes ainda considerado como uma curiosidade marginal e exótica Eram experiências sucessivas, guiadas por uma familiaridade cada vez maior de Jordi Savall e dos seus músicos de eleição com este repertório, levando-os a uma gama de escolhas e soluções interpretativas de sensibilidade histórico-estilística interiorizada cada vez mais rica e mais sofisticada. E ao Hesperion XX e à Capella Reial de Catalunya juntar-se-ia, a partir de 1989, um terceiro agrupamento, a orquestra barroca Le Concert das Nations, que permitia um alargamento ainda mais acentuado do repertório, chegando agora em termos cronológicos, mesmo que apenas ocasionalmente, a Mozart e Beethoven.
Em 1998 Jordi Savall e os seus agrupamentos passavam a gravar exclusivamente para a sua própria editora discográfica: a Alia Vox, anunciada como “La Voix de l’Interprète”. Savall tinha assim pela primeira vez, controlo absoluto do produto final das suas gravações, desde a escolha de repertório à selecção do material iconográfico e dos textos explicativos para as capas e os libretos. Começaram assim a desenhar-se na sua discografia perfis ainda mais arrojados e inovadores na concepção dos programas e até na abordagem interpretativa: por um lado encontramos álbuns por assim dizer “conceptuais”, estruturados em torno de figuras históricas centrais cujo percurso biográfico é desenhado por uma sequência musical, amplamente fundamentada por extensos textos explicativos: foi o caso de Afonso o Magnânimo, de Carlos V, de Isabel a Católica, de Cristóvão Colombo, de São Francisco Xavier, ao que há que acrescentar, complementarmente, Cervantes e o seu Don Quixote; por outro lado, reforçava-se de álbum para álbum o papel da ornamentação e da improvisação livre a partir do suporte de notação musical original das obras, recriando uma flexibilidade e uma liberdade interpretativas que até então pareciam excluídas da prática convencional da Música Antiga.
Por último – e sobretudo – Jordi Savall interessa-se agora cada vez mais por uma componente que sempre esteve presente nas suas interpretações de Música peninsular e italiana mas que hoje em dia se torna ainda mais evidente. As suas interpretações tomam em consideração de forma crescente a rede de interacções que está subjacente, de forma global, à vida musical e à composição na Europa do Antigo Regime, sobretudo nos países meridionais. Nestes últimos, de facto, as raízes árabes e judaicas tinham sido factores genéticos constitutivos desde os alvores da Idade Média, em articulação viva com as tradições latinas e cristãs, uma tradição reforçada com um constante intercâmbio civilizacional com o Maghreb e a Ásia Menor, e mais tarde, a partir do século XV, com as culturas autóctones da África, das Américas e da Ásia. Cada novo álbum aprofundava assim uma reflexão madura e fascinante sobre o encontro e o cruzamento das culturas, as rejeições e as curiosidades mútuas, as imposições coloniais e as afirmações identitárias, a coexistência difícil mas possível da violência mais extrema com uma capacidade espantosa de encontrar poéticas partilhadas entre vencedores e vencidos, conquistadores e dominados. E esta teia intercultural aplicada às Músicas do passado passaria a ser cada vez mais reforçada pelo recurso simultâneo a músicos de formação e raízes muito diversificadas: a par com os cantores e instrumentistas de matriz ocidental, surgiriam agora os virtuoses do alaúde árabe, das percussões africanas, das flautas do Extremo Oriente. A obra de Jordi Savall afirma-se hoje cada vez mais como um poderoso manifesto artístico em prol do respeito, do diálogo e da partilha entre diferentes identidades culturais, étnicas e religiosas, como um combate permanente pela tolerância e pela paz num mundo em que a violência cega, a exclusão social e a intolerância assassina parecem correr à solta.
O Prémio Europeu Helena Vaz da Silva agora concedido a Jordi Savall não consagra a posteriori, um trabalho já concluído. Antes saúda e assinala uma obra em plena construção, um olhar sempre novo e criativo sobre a prática interpretativa, um exemplo prestigiado de fusão perfeita entre técnica e talento, informação musicológica e criatividade artística, revisitação inovadora de repertórios já conhecidos e expansão permanente a outros patrimónios musicais. E sublinha, muito em particular, como se lê no comunicado do júri, “o seu contributo para a celebração da história multicultural da Europa, através do seu rico património musical”. Onde quer que esteja, a Helena só pode estar radiante por ver este grande prémio europeu com o seu nome atribuído a uma personalidade que assim partilha de forma exemplar de tantas das causas porque ela sempre se bateu.
Ao longo de mais de três décadas convivi intensamente com Jordi Savall: fui seu aluno nos primeiros cursos que veio dar a Portugal, organizei inúmeros concertos dos seus agrupamentos no nosso País, leccionei em vários dos seus cursos internacionais em Sant Feliú de Guixols, escrevi muitas notas musicológicas para discos e concertos seus, sou membro da Administração da sua fundação artística, o Centro Internacional de Música Antiga de Barcelona, fui seu padrinho no Doutoramento honoris que a Universidade de Évora lhe concedeu em 2007, e somos hoje, sobretudo, grandes e sinceros amigos. Tal como fui também amigo e colaborador constante de Helena Vez da Silva durante tantos anos, antes de ela nos ter sido brutalmente roubada por uma morte tão antes desse tempo muito mais longo que tanto ela como nós merecíamos. Faltam-me as palavras para poder expressar-vos o orgulho e a alegria que tenho em poder hoje e aqui participar no acto público de consagração deste laço simbólico entre a amiga que perdi e o amigo de sempre que nos continua a fascinar com o seu talento e o seu génio.
Parabéns, querido Jordi.
RUI VIEIRA NERY
12 de outubro de 2015